Ao fechar a porta ouvi uma voz me dizer: “-Boa sorte!”. Era algo realmente interessante para se desejar a alguém, mas recusei. Essa noite não precisaria de sorte para fazer o que iria fazer, mas sim de muita coragem. E eu a encontrei após infinitas doses de Absinto... quanto mais líquido percorrendo meu sangue, mais coragem. Agora eu era um homem destemido. Peguei minha mochila, já preparada com tudo o que eu ia precisar e caí na noite fria – porque sempre tem que fazer tanto frio nessas noites? Olhei para o relógio, não poderia mais esperar. Experiente, procurava andar nas sombras da lua – nem mesmo ela queria me acompanhar dessa vez - já era alta madrugada e estava muito escuro. Voltei a pensar na sorte, tentando descobrir para que ela serve. Acabei pensando em mil coisas sem importância nenhuma, então pela segunda vez nessa noite, deixei a sorte de lado. Apenas os morcegos, os verdadeiros donos da noite, me faziam companhia. Pensei naqueles que estavam dormindo em suas camas quentes, sem saber quem passava em frente às suas casas durante a madrugada. Para aliviar minha ansiedade, coloquei meus fones de ouvido e liguei Even Flow, do Pearl Jam. Deu certo, a guitarra me relaxou, e a voz de Eddie me fez esquecer aquilo que estava por fazer. Fui aos poucos me acostumando com a ideia daquela tarefa que estava reservada para mim, e achei que a melhor solução era cumprir logo a minha missão, sem pensar em quem poderia ser prejudicado com ela. Já estava perto do lugar onde tudo aconteceria, tinha que ser rápido e sair sem olhar para trás, ou não conseguira dormir outra vez, pensando no certo e no errado. Com certeza eu me sentiria mal novamente com aquilo, mas não podia desistir agora. Ao chegar perto do prédio, meus olhos arderam com a claridade das luzes que vinham de lá, e senti um calafrio percorrer minha espinha com o ar gélido que saía do saguão de entrada - era ainda mais frio que o ar da noite. Sorrateiramente percorri os corredores vazios e sem emoção, com suas paredes brancas e impessoais, ouvindo meus passos ecoando solitários e cada vez mais próximos de seu destino. Enfim encontrei o quarto 77, e dentro dele estava minha última missão, meu último martírio nessa vida. Abri a porta sem tomar o menor cuidado em não fazer barulho, já que a pessoa que estava lá dentro não iria se incomodar com a minha presença. E agora, deveria contar com a sorte? Ou seria a hora certa de mostrar a minha coragem? Tanto faz, pensei, o importante é terminar isso logo e sair daqui, para a consciência não me maltratar mais uma vez. No começo eu não gostava, mas depois de tanto repetir o mesmo ritual incansavelmente, acabei me acostumando, e até criei um método para que tudo fosse rápido e sem falhas. Abri a mochila, calcei as luvas, abri o meu livro de Salmos, na mesma página de sempre, e sem pensar em nada comecei a ler o Salmo 92, mecanicamente e sem sentimento algum nas palavras que saíam de minha boca. Certamente a família ainda me agradeceria por terminar com aquele desconforto. Fiz o sinal da cruz, em mim e naquele desconhecido que estava ali, estendido em minha frente sem demonstrar nenhum sinal de que ainda vivia. Arrumei seus cabelos, segurei sua mão e o abençoei para que seu deus o acompanhasse na passagem. Peguei minha garrafa de Absinto, dei um longo gole para aquecer o sangue e a alma já tão cansada de tanta maldade travestida de justiça e lentamente apertei o botão. Engraçado como a vida depende de tão pouco, nesse caso, apenas desse botão que comanda a máquina. Instantaneamente, uma após a outra, as luzes foram se apagando, o ruído foi diminuindo e eu sabia que a máquina estava desligada, e que amanhã estaria dando uma falsa vida a outro vegetal qualquer, apenas para satisfazer os caprichos de seus familiares, que certamente nunca lhe deram o devido valor. Aquela vida acabou, e mais uma parte da minha também, que não tinha valor algum. Então a realidade me cortou como um punhal afiado; eu também não era nada, sem sorte e sem valor. De que me valia empurrar essas almas para o além, enquanto eu mesmo me sentia num limbo? Foi como acordar de um sonho. Larguei a mochila, larguei a garrafa, tirei as luvas e corri. Corri como se fosse buscar minha vida em algum lugar longe dali. Senti os primeiros raios de sol lambendo minha pele, meus olhos lacrimejavam e eu não sabia por que. Corri ainda mais e como um bêbado inútil não sabia para onde ir, até que encontrei o lugar perfeito. Eu sempre soube que aquele viaduto teria alguma importância em minha vida inútil. Parei violentamente ao chegar ao muro de proteção, bati a cabeça, dei socos e pontapés naquela parede ridícula que tentava me conter agora, e ri, gargalhei como há tempos não fazia, olhei para o céu e agradeci por tudo aquilo que vivi até ali. Sem ter mais o que fazer, pulei o muro e caí do outro lado, onde não havia nada que pudesse me conter. Ninguém para segurar minha mão, ninguém para me desejar sorte. Esse era o fim para a minha justiça insana e anônima. Esse era o fim de minha pequenez e de meu egoísmo sem limites. O limite agora estava entre o céu e o chão. O limite da sorte é a razão. Foi meu último pensamento.
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Boa noite, boa sorte
Short StoryUm homem misterioso narra os acontecimentos de uma noite comum, mas que revela alguns segredos obscuros.