Capítulo único

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Arthur foi quem partiu primeiro.

Como se corroída por ácido, a mente aguçada de Arthur foi lentamente desmantelada pelo tempo. O sorriso presunçoso pelo qual Claire havia se apaixonado foi o último a desaparecer, levando consigo o brilho dos olhos de seu companheiro. A primeira coisa que a doença levou, de maneira discreta e quase imperceptível, foram memórias de seus primeiros anos junto a Claire e Annelise.

Em 1942, durante a festa de Natal, Arthur teve de recorrer à Claire para lembrar detalhes do primeiro aniversário da filha, que fora mencionado casualmente durante a conversa. Annelise, que decidira seguir os passos de Claire na carreira médica, preocupou-se com a condição do pai, mas ele as convenceu de que era apenas o cansaço.

Poucos meses depois, essas pequenas confusões já não eram mais tão esparsas. Arthur era incapaz de se lembrar dos primeiros passos de Annelise, a graduação de Claire na universidade, a morte de sua mãe ou o casamento de Nora. Não conseguia mais se lembrar de levar a irmã até o altar, segurar a mão da mãe em seus últimos momentos, o sorriso no rosto de Claire enquanto exibia seu diploma, o orgulho que sentira quando vira Annelise caminhar por conta própria pela primeira vez. Em sua mente confusa, essas memórias eram como uma matéria de jornal com centenas de palavras faltando. A maior parte das informações ainda estava ali, mas era impossível conectar o todo.

Era como se tudo estivesse lentamente sendo consumido pelo relógio.

Quando acordou pela manhã e não reconheceu o rosto cheio de rugas da mulher deitada ao seu lado, tentou agir de maneira racional. Ordenou que preparassem um verdadeiro banquete para o café da manhã e que oferecessem algo apropriado para a dama vestir antes do desjejum. Esgueirou-se até o escritório na ponta dos pés e pediu que um empregado lhe trouxesse roupas para o dia. Estava pronto para enfrentá-la independente de quem fosse.

Ao sentar-se à cabeceira da mesa, porém, a bela mulher serviu-se de chá e pequenos sanduíches. Parecia confortável em seu vestido vermelho e não hesitava enquanto mandava para dentro sanduíche após sanduíche. Os seus cabelos loiros haviam sido ordenados em um penteado prático e ela usava um belo anel que parecia vagamente familiar a Arthur. Não conseguia, porém, lembrar onde o tinha visto.

— Tem algo a dizer, Arthur? — questionou sem erguer os olhos de sua xícara de chá pela metade. — Você parece ter algo preso na garganta.

O seu tom de voz soava como o de alguém irritado, mas, por algum motivo, Arthur sentia que não era assim que se sentia. Algo lhe dizia que a mulher emburrada também escondia algo, assim como ele.

— Peço perdão se lhe ofenderei com a pergunta, senhorita... — Começou a dizer, mas ela lhe interrompeu.

—... senhora. — Franziu os lábios e ergueu os olhos, encarando-o. — Sou uma mulher casada, Sr. Carnahan. Há muito deixei de ser uma "senhorita". Mas, de qualquer forma, pode me tratar por "você".

Arthur imaginava que fosse casada, mas não quis arriscar ofendê-la. Pelo visto, havia sido pior daquela maneira.

— Espero que possa me desculpar, de qualquer forma — pigarreou, levemente atordoado. — Não era minha intenção ofendê-la, muito menos...

— Direto ao ponto, Sr. Carnahan. — Os olhos dela absorviam tudo, mas não devolviam nada. — O que quer saber?

Quem é você?

A mulher inclinou a cabeça para o lado e o encarou, ponderando. Os seus lábios se entreabriram e ela proferiu as palavras lentamente, parecendo lidar com um nó em suas cordas vocais.

— O meu nome é Claire — disse. — Nos conhecemos desde a infância. Você implicava comigo, puxava minhas tranças. Eu te odiava. Quando nos tornamos adolescentes, você foi mandado para a universidade e eu fui mandada para a França. Eu senti inveja de você e te odiei ainda mais. Nós implicávamos um com o outro e eu te chantageei para poder ir para a universidade, mas tudo deu errado. Nós nos odiávamos, Arthur. — A maneira como disse seu nome era quase uma promessa, contrastando com a sua declaração escancarada de ódio. — Ou, pelo menos, eu te odiava. Mas agora...

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