Capítulo Único

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Era um sábado ensolarado. "Ensolarado até de mais", pensava Maria sentada bem na frente do ventilador. O chalezinho de sua avó, onde Maria estava temporariamente hospedada, não tinha ar-condicionado, então ela teve que se contentar com o velho ventilador, cuja poeira era tanta que só de olhá-lo uma pessoa já sentia sua rinite atacando. Naquele mesmo dia, quando a menina chegou de seu passeio matinal pela pequena cidade de Desana, só tinha um bilhete da velha dizendo ter ido ao mercado, porém ela prometeu voltar logo. Sem muito o que fazer, ela pensou em explorar a casa.

Seria a primeira vez que era deixada sozinha no lugar e queria poder olhar e tocar em todas as quinquilharias de Marcella, sua avó. Porém, teria que abrir mão do gostoso vento que estava recebendo. Depois de um tempo a jovem finalmente toma coragem para se levantar e desliga o ventilador.

O rústico chalé de sua vozinha consistia de dois quartos, uma cozinha/sala, um banheiro e, o que mais lhe chamou a atenção, um quarto sempre fechado, que a avó não deixava Maria nem mesmo chegar perto. Ele não estava trancado e quando a jovem empurrou a porta, a ouviu "implorar" por um pouquinho de óleo para suas juntas.

Nele, em um canto bem fundo à esquerda da porta, havia uma caminha sem lençol ou edredom, dando para ver seu colchão puído e com as molas para fora. Uma mesinha de cabeceira, que talvez fosse de madeira nobre, repousava com um abajur queimado ao lado da cama. Na extrema direita havia um armário grande, porém vazio e, ao seu lado, um grande espelho estava pregado na parede em todo o esplendor.

O nobríssimo espelho era a parte mais bela daquele quarto, e talvez da casa como um todo. Com uma moldura dourada lustrosa, sua superfície refletora estava mais limpa do que as janelas da casa de Marcella. Ele ficava na frente de uma mesa de maquiagem, sem cadeira para se arrumar, onde existia apenas um diminuto cordão com uma pedra vermelha.

A garota ficou ali admirada não por sua imagem, mas pelo fato de aquele espelho ser a parte mais limpa e bem cuidada da casa toda. Foi aí que ela percebeu a imagem do espelho ficando cada vez mais turva. Agora, uma nova imagem se formava à sua frente. A visão era de um quarto muito parecido com o onde estava, porém mais limpo e os móveis pareciam mais novos. Maria ficou abismada e, enquanto se perguntava como era possível tal acontecimento, ouviu uma porta se abrindo, porém, quando foi se virar para conferir se seria sua avó voltando das compras, acabou percebendo que vinha de dentro do espelho. Ali ela viu uma mulher belíssima, usando um longo vestido branco. Foi quando percebeu um detalhe curioso, a imagem ali refletida, vinha do lado e não da frente. Ou seja, a mulher de branco que devia estar de frente, estava sendo vista de perfil como se a imagem viesse do armário e não do espelho.

A mulher virou seu rosto, olhou diretamente para Maria e piscou para ela. A garota se sentiu corada. Não sabia o motivo, mas foi como se ela tivesse sido pega em um lugar que não deveria estar. A mulher de branco começou a se arrumar na frente do espelho e agiu como se não notasse Maria do outro lado. A mulher do espelho colocou um véu na cabeça, colocou um colar muito parecido com o que Maria viu em cima da mesa. Assim, a garota supôs que ela fosse uma noiva se arrumando para a inevitável cerimônia.

A jovem quis falar algo, entretanto bem na hora, mais uma mulher aparecia na imagem. Essa agora de vestido laranja, abraçou a mulher de branco por de trás e lhe plantou um beijo no rosto. A intrusa levava uma mão nas costas como se escondesse algo da amiga que se arrumava. A mulher de branco estava radiante e ria de algo que a amiga falava. Foi quando viu que a de laranja escondia algo e implorou para lhe mostrar.

A de laranja quem, segundo o que Maria conseguiu entender da conversa, era dama de honra da de branco, que iria se casar logo, deu um inocente sorriso à noiva e pediu-lhe que fechasse os olhos. A de branco, sorridente e curiosa com um provável presente, acatou e levantou da cadeira para ficar mais perto da companheira

Foi aí que ela foi atingida. Sua colega a ataca com uma afiada faca de cozinha bem em seu pescoço. A noiva nem teve tempo de reagir, no momento que entendeu o que se passava, caiu no chão aos prantos. Não conseguiu gritar, estava petrificada de medo.

A mulher de vestido laranja esfaqueava o corpo quase sem vida da noiva. O belo vestido branco se tingia de vermelho a cada facada. Porém, não era só o vestido, o quarto aos poucos se manchava também. Era um verdadeiro banho de sangue. Gotas eram projetadas em direção ao espelho e assim Maria se sentia suja, enjoada.

Ela sai correndo para o banheiro e coloca tudo para fora. Quando terminou, saiu de lá sem olhar no espelho em cima da pia. Já fora do banheiro, ela se deita no sofá e começa a chorar. "Ela não pode me pegar, ela não pode me pegar...", fala entre os soluços. O veranesco calor ia lhe consumindo aos poucos e assim ela perdia suas forças. Acabou não lembrando de ligar novamente o ventilador de tão transtornada que estava.

Se ela desmaiou pelo calor ou pela terrível cena, não se pode saber. Em seu sonho ela relembra uma conversa que teve com sua mãe anos atrás. Maria ainda tinha cinco anos. As duas estavam deitadas na cama e haviam acabado de voltar de uma festa qualquer. O abraço da mãe era, e às vezes ainda é, sua fortaleza particular. Nenhum medo a alcançaria. Nenhuma mulher de laranja poderia lhe machucar.

O abajur na mesa de cabeceira projetava uma luz azulada, o que dava ao rosto negro da mãe um contorno lindamente angelical. A mãe tentava acalmar a filha que havia acordado de um pesadelo e não conseguia voltar aos sonhos por nada. Ela acalmava a filha e dizia que a tal mulher de vestido laranja nunca poderia lhe machucar.

Maria só acordou novamente ao entardecer. Marcella já tinha voltado e se mostrava preocupada com a neta que dormiu no sofá. A amarga senhora comia um bolo comprado no mercado enquanto interrogava a neta sobre os motivos para ela estar tão transtornada naquela noite. Ela oferece um pedaço do bolo de chocolate para a neta, que aceita. Assim Maria recebe um pedaço cortado por uma faca estranhamente familiar.

Um Pesadelo pelo EspelhoOnde histórias criam vida. Descubra agora