Parte I

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O Tanatopraxista

Ela tinha nome de flor. E também tinha nome de vítima.

Dália chegou ao tanatório às duas da tarde. Era o terceiro corpo do dia.

O primeiro fora um senhor de sessenta e oito anos que morrera na UTI do Hospital das Clínicas, de falência múltipla de órgãos, na madrugada. O segundo foi de outro homem, mais novo, baleado num assalto. Dália era a primeira mulher do dia, a mais jovem, e um ser com beleza estética tão óbvia e inquestionável que todos pararam para olhar.

Valentim já tinha lavado as mãos, vestido o macacão de plástico e colocado a máscara e luvas. Sabia que atrás de Josias e Murilo, sobre a mesa de aço inoxidável, jazia o corpo de uma mulher. Conseguia ver, à medida que se aproximava, seus cabelos negros e opacos em contraste com o branco do plástico que a envolvia.

Mas quando parou de frente ao cadáver, Valentim reconheceu Dália.

Olhou para os colegas de trabalho, que fitavam a mulher com uma mistura improvável de admiração e indiferença. – Quando chegou?

Murilo mascava chiclete. – Agora mesmo. Precisa estar pronta às sete, e hoje eu saio às seis. Você vai ter que fazer a maquiagem.

Valentim assentiu com a cabeça. Os outros dois se afastaram para cuidar dos toques finais dos dois cadáveres masculinos, cujos enterros já estavam se aproximando. Josias passava pasta no ferimento de bala enquanto assobiava a melodia de um pagode.

Suspirou ao olhar para Dália, inconscientemente abaixando sua máscara. Não compreendia como a reconhecera tão rápido. A última vez em que a vira fora há talvez quinze anos, quando os dois frequentavam a mesma escola em São Paulo, o colégio particular Júlio Verne. Havia muitas escolas dedicadas ao escritor Júlio Verne, porém a de Valentim era a única na qual o diretor era um americano que tentara implementar a metodologia estadunidense no colégio, de forma que Valentim e Dália e os outros alunos haviam tido aulas de fotografia, cerâmica e teatro na grade curricular.

Valentim mudara, em todos os sentidos, exceto talvez pela timidez, desde que vira Dália pela última vez. Seu espesso cabelo preto, da mesma cor que o dela, tornara-se prateado precocemente, o que lhe conferia uma aparência séria. Quando não apresentava risco, costumava mentir sobre a idade, dizendo que tinha quarenta anos, e nunca haviam duvidado disso. Na verdade, Valentim tinha trinta e quatro, a mesma idade da defunta.

Olhou seu rosto. Bonita, mesmo na morte. Levantou uma pálpebra com o dedão. Ah, que saudades dos olhos verdes de Dália. Estavam opacos. Sentiu cheiro de cloro. Não era comum.

Valentim conferiu a ficha. Horário do óbito: 9:03 hrs. Daquela manhã. Ele estivera tomando café com leite ali na funerária, folheando uma revista de medicina, esperando o primeiro corpo chegar.

Causa da Morte: traumatismo craniano.

Ele tocou seu rosto, o virou para o lado, aplicando a pouca força necessária, e viu a ferida na parte de trás da cabeça. Caminhou até o telefone branco que cheirava a álcool e ficava fixado à parede. Seu chefe, dono da funerária Lírio do Campo, atendeu no segundo toque.

- Sr. Lopes, - Valentim manteve a voz baixa, embora o coração estivesse disparando. – Qual foi a causa da morte da mulher que devo preparar?

- Aconteceu alguma coisa? – donos de funerárias morrem de medo de irregularidades, de processos judiciais, de problemas. A ansiedade na voz de Mário Lopes era tangível.

- Não. Apenas curiosidade. É muito jovem. Foi vítima de violência? Os papéis dizem "traumatismo craniano".

- Não, não, tipo, foi isso sim, mas ela escorregou e caiu. Parece que estava na piscina, num churrasco. Sabe, o povo tava chegando pro churrasco mas ela já estava curtindo a festa. Foi correr e escorregou na pedra, bateu a cabeça. Bum, já era. Na frente do marido. Foi o tio que me contou.

O TanatopraxistaOnde histórias criam vida. Descubra agora