Os olhos encheram de lágrimas, embaçando a visão do cadáver diante de si. Aquela tarde sempre carregava consigo as lembranças buraco negro. A sensação de humilhação voltava como se numa vingança pessoal, mesquinha, e inundava-o por completo, deixando-o contaminado.
Inclinou-se sobre seu rosto e começou a aplicação de creme selante nas pálpebras. Respirou fundo para a dor interior passar, sentiu a visão clarear, e fechou os olhos verdes de Dália.
Ela não falaria nunca mais. Não magoaria nenhum outro ser vivo com suas palavras. Não enxergaria mais. Seu olhar de desdém não cairia em outra pessoa.
Preparou os acessos, calmamente, e injetou a solução de embalsamamento arterial com a prática dos anos de trabalho. Parou o procedimento para drenar o sangue, usando uma seringa anexada a uma válvula, da sua jugular. O processo demora um pouco, e exige uma certa dose de estamina, pois é um procedimento deprimente para alguns. Mais de sete litros da solução foram injetados em seu sistema vascular.
Sentindo-se mais calmo, Valentim se preparou mentalmente para a próxima parte. Pegou o bisturi e fitou o corpo nu de Dália novamente.
A breja chegou!
Pensou na tarde, todos sentados na cama de casal do pai de Ana Clara, bebericando cerveja. Pensou nos dois casais abraçados, comentando o filme, que acharam "chato", fazendo piadas nas cenas de sexo. Valentim ficara lá, sentindo-se como se fosse fisicamente menor do que eles. Como se fosse uma miniatura de gente, ou até mesmo um cachorrinho esquecido por eles, indigno de atenção, indigno de fazer parte do grupo.
E Valentim fora assim a vida inteira.
- Esse tá pronto. – ouviu o gemido de cansaço, totalmente sintético, forçado, de Murilo. Virou-se e constatou que de fato o homem baleado estava num belo terno, pronto para ser enterrado. Como sempre Murilo fizera uma excelente trabalho de maquiagem, deixando o morto com uma compleição natural até, digna, para sua despedida. O motorista do carro funerário, Anderson, entrou no tanatório, andando daquele jeito balançado dele, com ginga demais, como se estivesse driblando uma bola de basquete. Valentim os observou trazerem o caixão até a sala, da forma mais rápida e gentil possível colocar o morto dentro dele, e começarem a colocar as flores em volta do homem, daquele jeito meio cocar de índio, que Valentim tanto odiava. Deram toques finais, apoiando as mãos do morto uma sobre a outra. Mexeram um pouco na cabeça, discutiram por alguns instantes se deveriam colocar mais flores ou não. Mexeram nos pés, calçados em sapatos recém-engraxados, cobriram o morto com um tecido leve, transparente, e com a ajuda de Josias, carregaram o caixão até o carro.
Valentim estava finalmente à sós com Dália, mas por tão pouco tempo. Sentou-se, o bisturi ainda em suas mãos. Lembrou-se de sair do quarto do pai de Ana Clara, as faces vermelhas, os olhos em lágrimas, e andar pelo corredor da suntuosa casa da menina. O piso era branco, de porcelanato, as paredes eram brancas, e tudo parecia uma coisa só, uma nuvem rígida de opressão e deboche.
Estava prestes a abrir a porta da frente, imaginando uma cena em que chegaria em casa e imploraria os pais para lhe colocarem numa escola pública, ou outra particular, mesmo que longe, para que não tivesse que ver e ser visto por aqueles merdas de novo, quando ouviu a voz de Dália:
- Ei, ei, espera, cara!
O corpo enrijeceu, e ele permitiu-se um momento de esperança. Olhou para ela, que caminhava até ele, ainda descalça, no piso brilhante, naqueles shorts. Era linda. Tinha a aparência de quem cheira a jasmim. Parecia ter a alma de uma elfa dos bosques, parecia que seu andar deveria ser acompanhado por uma obra de Vivaldi. Ela parou tão perto dele. Valentim podia ver detalhes dela que nunca vira antes. Poros. Um brilho de suor na testa onde o cabelo nascia. – cara, - ela disse, a voz como mel, o bafo quente, de cerveja. – você não pode contar pra ninguém que a gente tava bebendo aqui.
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O Tanatopraxista
HorrorUm conto de terror para os fortes de estômago. "Trate bem as pessoas em vida. Você nunca sabe como elas te tratarão na morte."