Não importava quão frio fosse, eu incendiava o rinque quando minhas lâminas riscavam o gelo.
Dançar é mostrar facilidade mesmo que toda força e impulso tenham que ser gerados de um pleno estado de inércia. É transmitir graça e beleza em passos complexos que você ensaiou meses para mostra-los uma única vez e então uma nota definir quão boa é sua técnica.
Mas a dança só vale a pena de verdade, só ganha vida quando se é sentida. Se você consegue emocionar e envolver apenas falando com o corpo então aí, só aí se supera qualquer lugar, posição ou nota.
Um dançarino cheio de técnica conquista primeiros lugares e medalhar de ouro, mas um dançarino que poetisa com o corpo transborda emoções até das pessoas mais leigas.
É assim que eu sou com a dança desde os meus cinco anos quando ganhei os primeiros patins. Ele está pendurado na minha parede de inúmeras medalhas e troféus, é o meu orgulho.
Sempre que eu pisava no gelo e a música tocava era como se cada célula e nervo do meu corpo se ascendesse como uma árvore de natal. Meu corpo sempre se entregou a cada passo e saltar, mas eu tive que batalhar muito por minha técnica.
Sou o que eles chamam de prodígio do gelo. Sempre foi a única coisa que tive certeza, mas pela primeira... Pela primeira vez não sei o que estou fazendo. Não sinto as ondas sonoras da música me impulsionando, minhas pernas parecem moles e a linda garota que patina ao meu lado parece apenas um vulto de cabelos loiro escuros.
Olho para as arquibancada procurando minha mãe mesmo que os holofotes ofusquem mais minha visão.
Inspiro uma, duas vezes tentando acalmar meu coração que parece bater em meus ouvidos. Encaro minha parceira, mas seu rosto entra e sai de foco.
Ela confia e mim. Somos um casal dentro e fora do rinque, nos encaixamos desde o primeiro treino e a partir de então a mídia nunca se cansou da gente. Não importava onde um de nós estivesse o outro estaria junto. Não éramos como qualquer duplinha ensaiada, nós nos conhecemos tão bem a ponto de um improviso parecer armado. Enquanto eu guio seus pés ela guia as minha mãos e nossos corações batem como um só. Ela é o amor da minha vida e estou prestes a decepcioná-la.
A cada patinar sua mão parece escorregar da minha. Aperto-a com mais força, pois hoje eu não sou o apoio dela, ela é o meu. É ela quem me mantém de pé nesse rinque.
Suas costas quente se colam em meu peito me fazendo perceber como estou ofegante e suando frio. Ergo-a minimamente para que deite a cabeça em meu ombro. Nossa dança é repleta de toques envolventes, todo o romance que as pessoas querem e esperam de um casal, mas o nosso é sempre melhor porque o que temos é verdadeiro.
Eu a deslizo por meu braço e ela estende a perna atrás em um arabesque. Patinamos mais rápido e eu a tomo para lança-la no ar e voltar a cair em outro perfeito arabesque de arrancar suspiros. Nossos movimentos são como espelhos, se ela dá um salto duplo eu também dou, se eu salto a um metro do chão ela também salta e agora daremos um salto raro.
Apenas três pessoas no mundo fizeram isso e seremos os quartos, faremos isso juntos. É hoje que marcaremos de vez nossos nomes da história da patinação.
Minhas pernas tremem só de saber o que está por vir, a força que precisarão fazer. Meu olhos ardem, prestes a lacrimejar e sou obrigado a forçar a vista para ao menos enxergar o gelo sob meus pés.
Tenho que mostrar que sou um campeão e não vai ser um momento de fraqueza que vai me derrubar. Firmo minhas lâminas contra o gelo como se pudesse parti-lo ao meio.
A bile sobe pela minha garganta, minha cabeça lateja. Essa sensação nauseante parece nunca parar de me perseguir.
Nossos olhares se encontram e puxo forças do meu âmago para saltar e girar uma, duas, três... Mais meio giro e quando ouço os gritos e aplausos irrompendo por todos os lados tenho a certeza de que marcamos a história. Com essa acrobacia garantimos nosso primeiro lugar no pódio.
Amanhã nossos rosto estarão estampados por todos os lugares como os campeões dos Jogos Olímpicos de Inverno com um triple axel e meio.
Tento me concentrar e controlar a respiração para a última sequência, mas a bile parece subir minha garganta, a queimação atinge meu estômago e minha pernas parecem estar virando geleia.
Nos preparamos para a próxima acrobacia e preciso usar o resto de minhas forças para lança-la no ar como uma pena flutuante — só preciso me manter de pé por mais uma sequência.
A pressão e a fraqueza me deixam com a sensação de estar dopado. As luzes parecem oscilar e eu perco o foco da garota que gira acima de minha cabeça. Ela está prestes a descer nos meus braços. Tento puxar o ar para meus pulmões, mas eles mais me escapam do que entram.
Ela confia em mim e não posso deixa-la cair. Estendo os braços em sua direção mesmo que seja apenas um borrão escuro vindo para mim. Mas então um baque pesado me atinge.
Sinto minhas costas gelarem e suor frio escorrer por meu rosto. Abro os olhos e encontro outro par azul cristalino sobre mim transmitindo puro choque e preocupação. Eu a decepcionei... Tudo se escurece novamente e sinto algo quente escorrer atrás da minha cabeça, penso ter quebrado o gelo, mas seria impossível, estaria gelado e não tão quentinho.
Meu corpo inteiro treme, dói e está fraco, mas de alguma forma ele se relaxa e se não fosse as inúmeras vozes a minha volta eu me entregaria a esse momento de pura inexistência.
Eu só tinha um trabalho que era me manter de pé no gelo garantindo meu posto de melhor patinador. Deveria estar nos levando a vitória do mundial. Ela estava lá por mim e eu deveria estar por ela... Mas eu fraquejei.
Ouço bem ao longe a voz da minha treinado pedindo para que ninguém me toque, mas eu estou com tanto frio que tudo que desejo é uma coberta e um pouco de calor humano. Sinto pingos grossos e quentes atingirem meu rosto. Lágrimas. Sempre tão dramática essa minha garota, espero que esteja chorando por eu ter possivelmente acabado com sua carreira e não por mim.
Devo ter ficado algum tempo inconsciente, pois a última coisa que me lembro é de uma sirene ensurdecedora e uma mão quente e familiar segurando a minha. A mesma mão que segurou a minha todas as vezes que eu estava a um passo de entrar no rinque. Minha mãe, ela sempre estava lá por mim. Até mesmo na minha queda.
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O Medo É Feito De Gelo | l.s.
FanfictionApós um ano em Londres, longe dos holofotes e competições, é hora de voltar para São Petersburgo, para casa - os rinques. Chegou o momento de enfrentar seu medo da plateia, multidões e principalmente de falhar mais uma vez. Acabou os flashes de gel...