Solidão

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Mais uma vez me vejo sentada em um sofá velho, olhando para uma estante de madeira comida pelos cupins, a televisão velha chiando e alguns livros antigos e de grande estima completam o cenário.

Sou uma contadora de 37 anos, que trabalha em um pequeno escritório no centro da cidade, juntamente com mais dois senhores, um de 58 e outro de 72 anos. Sou solteira, encalhada, esquecida amorosamente, que mora em um apartamento pequeno e que cheira a mofo.

Sou a terceira de cinco filhas, a única pela qual meus pais não possuem tanto apreço, pelo o menos é o que sempre achei, até porque nunca lhes dei netos, um genro, presentes caros ou lhes fiz companhia. Minhas irmãs não, sempre foram bem sucedidas, casaram-se com homens importantes, bonitos, deram a nossos pais netos, casa, viagens e tudo o mais que eles sempre desejaram. Sai de casa aos 16 anos e desde então sigo minha vida a minha maneira.

Isso é tudo que posso e tenho a falar sobre minha vida, nunca fui uma aventureira, popular, bela, tudo o que sempre tive foram meus livros, os números e uma vida medíocre, não tenho muitos amigos, na verdade não sei nem se tenho um sequer. Não uma pessoa amarga, também não sou alegre, tenho meus momentos.

Ultimamente tenho tido uma rotina bem disciplinada, estou de férias do trabalho, então fico 80% do tempo dentro de meu apartamento, os outros 20% divido entre ir à padaria e à lavanderia. Quando estou em casa escrevo em meu diário, leio, vejo televisão, mais especificamente filmes de época, desses em preto em branco, cuide de uma pequena horta que cultivo na janela da cozinha.

E assim os dias vão se passando, da mesma maneira, com a mesma rotina. Até que recebo uma ligação, meu pai havia falecido, minha irmã queria me buscar para o enterro, para prestar a última homenagem, disse que não era preciso que iria por conta própria, que chegaria a tempo. Tão difícil de acreditar, a última vez que o vi estava jovem, saudável, forte e ainda comemoravas com pulos e gritos os gols do seu time de coração.

Me dirigi até o local onde aconteceria o velório, olhei pelo vidro da porta e vi meu pai, deitado em um belo caixão, seu rosto tinha uma expressão de pureza, de tranquilidade. A sua volta estavam minhas irmãs e seus conjugues, todos muito abalados, as crianças corriam de um lado para o outro, não deviam saber o que estava se passando. Num canto observei uma senhora quieta, com um lenço de rosas nas mãos, parecia triste, mas não se desesperava, era minha mãe.

Não tive coragem de entrar, faziam tantos anos que não os via, não pude, quis, mas não pude, fiquei o tempo todo olhando pela janela, rezei por meu pai, chorei, mas não pude dar-lhe um último beijo. Queria ter feito isso enquanto ainda vivia, mas minhas escolhas não tornaram possível. Passou-se o enterro e no dia seguinte fui até o túmulo pra deixar-lhe flores, dizer algumas coisas e só assim pude acreditar que era verdade.

Passaram-se algumas semanas tinha voltado ao trabalho, parecia tudo normal, porém agora a melancolia me consumia, sequer penteava os cabelos para sair de casa, minhas roupas estavam encardidas, senti que meu cheiro não era mais agradável aos outros, foi então que resolvi deixar de trabalhar. Me demiti do escritório, comprei comida o suficiente para não ter que deixar meu apartamento sob nenhuma circunstância e no inicio funcionou.

Meus filmes se esgotaram, os livros já estavam sendo relidos, meu diário possuía uma única página restante, no armário de compras apenas poucos ingredientes que não se completavam para uma única refeição. Decidi sair e buscar alguma coisa, me dirigi ao banheiro e me olhei no espelho, não me vi ali refletida.

Aquela não era eu, era apenas um fantasma que não tinha mais motivos para viver, que não encontrava sentido nas batidas de seu coração. Com um tom pálido nos lábios, o cabelo sem brilho, as unhas comidas, alguns quilos mais magra, sim, era um fantasma. O fantasma de alguém que algum dia foi uma filha, uma trabalhadora, uma menina, mulher, fantasma de alguém que foi e hoje não é mais.

Decido não mais sair, sento-me no sofá, estou dispersa, muitas coisas passam pela minha cabeça, muitas ideias, soluções talvez, medidas necessárias, escolhas difíceis de se fazer. Meu telefone tocou, atendi, era uma de minhas irmãs, disse que minha mãe também se fora e se dessa vez poderia me buscar, aceitei e disse para entrar sem bater, deixaria a porta aberta para ela.

Peguei meu diário preenchi sua última página em branco, tomei um banho, penteei os cabelos, cortei as unhas, dei vida a meus olhos, pus o diário aberto sobre a mesa de centro da sala, próxima a uma foto de família, uma foto de quando eu ainda era uma menina.

Contava os minutos até que minha irmã chegasse, ouvi um barulho de carro se aproximando, corri para a janela, não sabia se era ela, vi uma moça descer, mas não a reconheci, não sabia sequer qual o rosto de minha irmã. Ela subiu, como o combinado entrou sem bater, estava eu sentada no sofá, a vi, um sorriso tímido se abriu, ela me abraçou, disse que sentia minha falta, uma lágrima caiu sobre seu ombro e um filme passou em minha cabeça.

Perguntou se eu estava pronta e se poderíamos descer, disse para que ela fosse primeiro e me esperasse no carro, ia pegar algumas coisas que havia esquecido, ela disse sim e desceu. Sentei no sofá, olhei mais uma vez nossa fotografia, algumas lágrimas caíram sobre o diário, onde os pingos mais pareciam pequenos corações, beijei o recado escrito e vi que estava, finalmente, pronta.

Com as mãos tremulas abri a porta que dava para a sacada, observei minha irmã conversando com o porteiro, frente a seu carro, olhei para dentro mais uma vez, me posicionei e enfim fui em direção à minha felicidade.

Um grito ecoou por toda a rua, minha irmã, se aproximou, olhou para meu rosto e pode observar uma expressão de paz, um leve sorriso ainda se mantinha, era como se assim como uma pena, eu suavemente pousasse. Agora sim, meus pais me esperavam em um belo jardim, flores, luzes e um pequeno banco de praça, pude vê-los, pude ouvi-los e em um último suspiro o sutil sorriso, tomou conta de minha face e finalmente os abracei.

E naquela última página em branco era possível ler...

"Mamãe, papai hoje irei encontrá-los, quero que me esperem na porta, pretendo correr e dar-lhes o abraço que à anos estou devendo. Me entendam e me perdoem por tudo o que os fiz passar, por tudo o que não fiz por vocês, mas prometo que a partir de hoje teremos uma nova vida, seremos uma família e daí de cima olharemos por minhas irmãs e por suas famílias. Amo vocês, espero ansiosa por aquele abraço"

                                                     


                                       Com amor, a filha que sempre os amou, mas nunca teve coragem de mostrar. 

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