Parte I

145 30 129
                                    

Kelly Vasconcelos é uma pessoa muito importante, de inestimável valor para a manutenção da ordem global. Sem Kelly, certamente o mundo entraria em colapso. Ela é atendente da Padaria Santa Helena, e se todas as Kellys sumissem da face da terra, os mortais se matariam na fila do pão, escolheriam e empacotariam tudo com mãos imundas, propagando doenças. Na ausência de uma figura de autoridade que organiza a fila, restam lutas pelo alimento mais dourado e quente, socos, chutes, assassinatos a sangue frio. Eu me sobrecarregaria ainda mais.

Sim, eu estou sobrecarregada. Não tanto quanto no século XIV com a peste negra ou durante as guerras mundiais. Porém, quanto mais gente nasce nesse planeta — e vocês são criaturas que se reproduzem em velocidade absurda — mais corpos para levar. E não são só vocês, claro. Humanos são a menor parcela, tenho protozoários, incontáveis fitoplânctons, bactérias, animais e até mesmo árvores. Não se sintam especiais, a diferença entre vocês humanos e as demais formas de vida, é que seu potencial destrutivo é gigante, matam os outros mais que qualquer espécie. Não gosto de vocês.

Gosto dos tardígrados, os adoro. Sabia que eles são as criaturas mais resistente do planeta e resistentes a temperaturas absurdas? Fogueiras, gelo, vácuo espacial. No geral, não preciso me preocupar com os fortes e insuperáveis tardígrados. Já humanos, são frágeis como papel. Quando surgiram, não pensei que tomariam tanto espaço terrestre assim. Hoje são quase 7 bilhões.

Não deixam de ser criaturas pequenas e insignificantes, completamente alheias à imensidão do universo, agarram-se a vida como qualquer outro ser. O que me irrita especialmente em vocês, é que insistem em matar e matar outras vidas por razões fúteis como fabricar bolsas ou porque determinaram que o oceano é um ótimo reservatório de plástico. Parecem matar por pura diversão.

Resumindo, não tenho muito o que fazer além de levar todos, todo dia e sempre. Não sou uma criatura personificada. Não venha com essa coisa de capa preta esvoaçante e foice longa, adoraria saber quem foi o espertinho que me desenhou assim, sonho que todos me imaginem mais estilosa. Cada um tem sua própria imagem de mim, com elementos que se repetem como crueldade e maldade. Não tenho forma, mas se tivesse detestaria essa aparência.

Vamos voltar a Kelly e o dia em que tive que me personificar em algo sólido. A inteligência limitada dos mortais não pode entender, mas é como se existisse um grande arquivo de data e causa da morte para todos, bem dentro de mim. Eu não sei nada sobre sua vida, só sobre sua morte.

Não questiono, não sofro. Tudo apenas acontece em vários lugares e horas, ao mesmo tempo, porque a morte é onipresente.

Kelly Vasconcelos, 27 anos, 31 de outubro de 2021, traumatismo crânioencefálico.

— Cinco reais de pão, por favor

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

— Cinco reais de pão, por favor. — Disse dona Margarida, 62 anos, 31 de setembro de 2026, choque elétrico.

— Bom dia. — Kelly virou-se. Atrás dela, a fila do pão da panificadora Santa Helena crescia e crescia, porque uma de suas colegas atendentes resolveu faltar. No domingo, a padaria só funciona pela manhã. Naquele país abaixo da linha do equador, os mortais nutriam um grande amor pela refeição denominada "café com pão".

Dona Morte Não Escolhe Cliente | ContoOnde histórias criam vida. Descubra agora