Parte II

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Se vocês humanos olhassem por um segundo para a imensidão do universo, perceberiam que na verdade não são nada. Durante o trajeto até a tal festa de Halloween, Kelly conversou ao telefone sobre assuntos odiosos, desprezo e raiva. Não parou para ver o céu crepuscular, que apesar das nuvens de poluição, exibia um pouco de beleza.

Ela entrou meio sem jeito, era um espaço amplo com decoração de abóboras, caveiras e sangue falso. Neste país abaixo da linha do Equador, é raro encontrar esse tal de "doces e travessuras". Em vez disso, as meninas se fantasiam de Arlequina e os meninos não ousam demais. Vieram bruxas, zumbis e chifres de diabo piscantes, o tipo de fantasia barata e fácil. De vez em quando algo mais divertido, nada realmente original.

Eloá, 56 anos, 12 de julho de 2049, briga por herança, servia ao lado das irmãs bandejas com copos descartáveis de coca cola, caracterizadas de mim, pasmem, pintura facial de caveira e vestidos pretos. Elas serviam, sorriam, batiam fotos e se abraçavam constantemente. Briga por herança, aquilo me assustava. Não pareciam tão unidas e amadas enquanto jovens?

Ao ver a outra irmã, tomei uma baita dica: Denise, 60 anos, 12 de junho de 2050, atentado no presídio. Não quis saber da terceira irmã, pra mim estava claro o que ia acontecer. Elas pareciam ter boa condição financeira pra bancar a festa, e as duas abraçadas se matariam por causa do dinheiro anos mais tarde.

Humanos, a vida é como a frágil chama de uma vela. Vocês nascem sem nada e, quando morrem, também não levam nada. Neste curto prazo em que existem, vocês brigam por essas coisas que não vão levar.

A lua descia cada vez mais no céu e nada de Kelly vir aos meus braços, ela se aproximou de algumas pessoas, perguntou por Lucas e sentou-se escorada em uma parede decorada com papel higiênico para comer uns biscoitinhos. Tenho paciência, diversas vezes é assim. O que me entristece são casos como o de Kelly, quando a criatura está sozinha. Nos hospitais ou rodeada de familiares, é triste, penoso, mas aquela garota era uma menina com seu biscoito, sozinha no meio da multidão.

Ela levantou-se para ir embora, não tive mais palpites quanto a sua morte. Já próxima do portão, Eloá segurou seu braço, surpreendendo a moça com a carranca de caveira.

— Oi, Kelly. Não tá gostando da festa?

— Sim — respondeu insegura.

— Já vai tão cedo?

— Bom, lembrei que tenho trabalho amanhã e...

— Besteira, venha! Preciso de você.

Ela puxou Kelly para dentro do salão novamente, perto de uma mesa recheada de brigadeiros e outros docinhos.

— Olha, já que não está fantasiada nem de salto, será que você pode arrancar da parede aquele adesivo de abóbora pra mim? Quero levar pra outro lugar.

— Eu?

Eloá apontou para a cadeira de plástico e eu entendi. Só podia ser aquilo. Kelly cairia em poucos segundos e bateria a cabeça, cumprindo o que eu já sabia. Uma morte no dia das bruxas.

— Depois te apresento a galera,

Kelly assentiu e subiu na cadeira, precisou até ficar na ponta dos pés para alcançar o adesivo, me preparei. Imagine que peguei a foice. Como não tenho corpo de verdade, somente preparei-me de algum jeito invisível.

De repente, porém, Kelly meneou a cabeça, irritada, desceu da cadeira sem nem ao menos tocar o adesivo.

— Desculpa, não dá.

— Espera!

Confusa, olhei de um lado para o outro. Kelly não foi em direção a porta, e sim até um garoto cercado de Arlequinas. Não foi a expectativa quebrada da morte da cadeira que me assustou, embora, pelos meus cálculos, uma possível queda levasse seu crânio até a quina da mesa. O que me assustou foram os meus registros, eles sumiram. Eu via Kelly, mas não existiam datas nem causa da morte para seu rosto. Como podia? Aquilo aconteceu algumas vezes, um humano se atrasar para a própria morte, só que era extremamente raro, há três séculos não me deparava com isso.

Dona Morte Não Escolhe Cliente | ContoOnde histórias criam vida. Descubra agora