A mente de uma criança solitária

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Desde o dia em que eu adquiri consciência minha melhor amiga sempre esteve comigo. Éramos uma só pessoa, com corpos que continham dois longos braços que nos permitiam escalar as grades que nos prendiam e sufocavam, uma cabeça onde se passavam cargas elétricas rapidamente e repetidamente, duas pernas que nos erguiam tremulamente no início e, depois, com tanta confiança quanto Katy Parry no palco. E, por fim, uma medula espinhal que conectava cada célula, músculo e órgão. Tais componentes cresciam, se desenvolviam.

Minha primeira respiração foi seguida pela minha primeira visão: uma máscara azul, tão azul que eu me perguntei o que mais teria essa cor, seria o mundo todo assim? Não. Havia um mundo inteiro e vasto de cores que eu mal conhecia naquela fase da minha vida longa.

Eu e minha melhor amiga costumávamos olhar para os animais pendurados à cima de nossas cabeças e os imaginávamos caminhando pelo papel de parede azul, verde e amarelo do nosso quarto. Naquela época, nem sabíamos o que eram, mas isso não nos impedia de cansar nossas mentes até a exaustão todas as noites.

Quando minhas pernas pararam de tremer sempre que levantava, passei a prestar mais atenção à minha volta. Os azulejos floridos pareciam mais cheirosos. E o nosso cachorro, cujo nome não me vem mais em mente, mais amigável e menor. As únicas constantes eram meus pais, minha avó materna e minha melhor amiga.

O primeiro livro que conseguimos ler e entender foi como uma lufada de alívio, nada mais conseguia se esconder dos nossos olhos jovens, nem mesmo a irritação da mulher baixinha e enrugada que me forçava a comer abóbora. Ela pensava que nós não notaríamos o sabor característico daquele legume horrível ao ser amassado em uma mistura de comidas que eu e minha melhor amiga apenas imaginávamos o que eram.

Para nós, o mundo era apenas uma eterna brincadeira, mas, meus pais, aparentemente, achavam o contrário. Eles consideravam que que não tinha amigos e, apesar de tê-los afirmado o oposto, me levaram para um lugar asfixiante e irritante e me deixaram ao lado de uma garota pálida e de cabelos brancos (essa foi a melhor parte da viagem ao consultório da Dr. Cega).

Nós não conversamos, apenas dividimos o mesmo trenzinho. Ela parecia legal e... diferente. Diferente das crianças do parquinho. Diferente de mim e do resto da minha família de cabelos que eu jurava estarem em chamas. Diferente de tudo que nós já tínhamos visto e admirado ou odiado. Era um diferente bom, que ardia tanto quanto os cabelos da minha mãe no sol de meio-dia. Nós gostávamos de diferente.

A consulta monótona era com a mulher de cabelos de almôndegas e óculos de mesmo gosto e tamanho, e se tornou mais suportável quando imaginamos aquele trenzinho rodando suas rodas por cima da cabeça daquela menina, como se estivesse passeando sobre a neve (algo parecido com o que vi na televisão da sala).

Um dia, eu e minha melhor amiga estávamos caminhando com meus pais logo atrás quando nos deparamos com um caminhão enorme em frente à portaria. Milhares de borboletas saíam e entravam de lá carregando grandes caixas. Meus paus não ligaram muito para o barulho que o bater das asas coloridas faziam.

Minha melhor amiga sempre foi e ainda é o bem mais precioso e leal que uma criança poderia ter, e foi a coisa mais especial que eu já tive. Porém, para os meus pais, foi o motivo de eu nunca responder a uma pergunta na primeira vez que se dirigem a mim, da minha solidão. Isso era, na minha casa de infância, um assunto delicado que sempre causava muitas brigas (ou argumentações, como eles diziam para mim), que, de vez em quando, envolvia meus três avôs vivos e o espírito da minha avó paterna.

Apesar da minha "falta" de relações humanas duráveis, nada me impediu de passar pelos ensinos fundamentais e médio e pela faculdade de administração. E, agora, a luz solar atravessava nosso quarto e eu me amaldiçoei por ter preguiça e fechar a cortina na noite anterior.

O peso no meu braço direito me dizia que era fim de semana, pois, se não fosse, Karina já teria saído para trabalhar e eu acordado com o despertador antes do sol nascer. Virei o rosto para a direita encontrando um rosto pálido em meio à neve. Eu tinha mais uma melhor amiga e parceira. E me perguntei: "Quando ela vai acordar? Meu braço está dormente."

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