Uma morte, uma garrafa. Era mais fácil lidar com o luto estando fora de si, mesmo que a culpa ardesse como o inferno. Observar a garrafa quase vazia em suas mãos virou uma boa forma de se distrair, brincar com ela como se estivesse criando coragem para beber o que restava do líquido ali, ou apenas já estava bêbada o suficiente para sequer raciocinar o que estava acontecendo ao seu redor. Qual era o sentido de salvar o mundo quando tampouco conseguia salvar a pessoa mais importante para si? Tentar achar a resposta para essa pergunta estava sendo o maior desafio daquela manhã, já que sequer havia passado das 10 naquele momento. Já havia virado rotina acordar de mais um de seus pesadelos com Thiago, o Deus da morte, e até mesmo com Daniel e Alexander, e ir direto para o bar próximo de sua casa, onde provavelmente o dono já estava enjoado de sua cara. Eram tantas mortes, o certo não deveria ser só uma garrafa? Logo viraria alcoólatra por tantos que perdia. Deveria encontrar os garotos a poucos minutos para ir para a Ordem, mas essa era uma das últimas coisas em sua lista de prioridades.
Soltou uma risada seca, deixando aquela garrafa agora vazia no balcão de forma bruta e recebendo um olhar cortante do barmen, como se estivesse segurando para não discutir com a mulher. Se limitou a revirar os olhos e se levantar da pequena banqueta que estava sentada, andando de forma cambaleante em direção à saída. Percebeu que algumas pessoas ali a olhavam de forma curiosa, como se não fosse normal uma senhora estar em um local como aquele e naquele estado tão cedo. Ah sim, era uma senhora agora, com cinquenta anos e somente vinte e oito vividos de forma satisfatória. Na verdade, satisfatória seria uma palavra forte demais, talvez comum se encaixaria melhor.
Andava de forma lenta em direção ao atual prédio da ordem. Se sentia cansada física e mentalmente, sua cabeça pesava e sob seus olhos haviam olheiras bastante profundas. Se fosse à alguns dias atrás, seria possível ainda ver seus olhos inchados de tanto chorar, porém agora aparentemente suas lágrimas haviam secado, assim como todos os sentimentos bons dentro de si. Somente era possível perceber raiva, amargura e rancor nas íris negras da polícia. Ou ex-policial, já que se demitiu na mesma semana em que voltou para São Paulo, assim como planejava fazer com a ordem, se desvencilhar totalmente dessa organização. Não aguentava mais perder tanto, não conseguia. O sentimento que predominava era que se continuasse a encarar casos assim e se apegar demais, amar demais, se entregar demais, a próxima que iria partir seria ela mesma, pois tiraria a própria vida. Sua vida estava acabada por conta do Deus da Morte, levou seus anos de vida e seu melhor amigo, Thiago, então o próximo mostro levaria o quê? Sua alma? Nem sabia se tinha uma mais.
Sem perceber, já estava no elevador, esperando a porta abrir no último andar para encarar aqueles que evitou desde o ocorrido. Seu estado era precário e o cheiro de bebida era perceptível, mas esta era a última preocupação da mais velha no momento.
— Sensei! — Esta foi a primeira coisa que Elizabeth ouviu ao abrir de portas do elevador. Focou seu olhar e viu o rosto não tão brilhante mais de Joui, que apesar de tentar aparentar animação, sua aparência não mentia. Olhos caídos e olheiras tão grandes, ou se não maiores, que as dela mesma.
— Eae Joui — falou de forma enrolada, entrando na pequena sala de espera e acenando para os presentes ali. Todos já haviam chegado, afinal, estava atrasada e não ligava nem um pouco para isso.
Pôde perceber, sentando um pouco mais afastados dos demais, Cesar, que parecia concentrado em seu aparelho telefone e somente levantou sua cabeça para cumprimentar Elizabeth. Já do lado de Joui, estava sentado o pequeno Arthur, que também parecia querer forçar um sorriso para a mulher enquanto a dava bom dia. Todos estavam com a aparência acabada, mas ninguém poderia julgar, pois cada um sabia exatamente contra qual pesadelo estavam lutando.
— Sensei, você... — Joui começou, porém, por algum motivo, sua voz foi morrendo aos poucos, como se simplismente houvesse desistido de comentar algo sobre o estado da mais velha. Jouki a conhecia o suficiente para saber que não seria bem recebida qualquer frase que falasse no momento.
Mordeu o lábio inferior, respirando fundo enquanto desviava o olhar. Se passava muitas coisas na cabeça do asiático, mas a mais persistente era se Elizabeth ficaria bem, se eles ficariam bem. Um vazio inexplicável habitava seu peito, e, sinceramente, talvez perguntar como sua mentora estava no momento era a pior coisa que se poderia fazer. Ele já não carregava fardos o suficiente? Joui não queria saber o que se passava na cabeça da ex-policial, e se sentia péssimo por isso. Ele não deveria se importar mais? O tempo que havia passado em santo berço, tudo que viu e fez acabaram por tirar boa parte do que Jouki sempre teve medo de perder: sua humanidade.
Não saberia dizer se Elizabeth tinha ou não percebido sua movimentação estranha, porém mesmo se esse fosse o caso, a mais velha não iria comentar nada sobre. O clima era estranho, o cheiro de bebida que emanava da mulher era algo que todos estavam extremamente cientes, assim como o quão dispersa ela parecia daquele lugar.
Acabando com aquele momento que se tornou tortura para todos, a porta a frente deles se abriu, demonstrando o impecável Sr.Veríssimo em seu tão elegante terno, os chamando para entrar. A Webber sentia vontade de rir de desgosto ao olhar para o rosto daquele homem. Apesar de todos ali terem sofrido tanto, terem perdido tanto, o homem ainda tinha coragem de se apresentar frente a eles daquela maneira, com seu terno polido e sua postura perfeita.
Entrou dentro da sala por último, de maneira lenta, nunca desviando o olhar daquele que sequer fraquejava naquele embate. Sentou em uma cadeira e cruzou seus braços, estralando a língua de maneira irritante para que acabassem com aquilo rapidamente.
— Sejam bem-vindos. — Veríssimo os saudou de maneira firme, olhando para os rostos ali presentes de maneira cansada.
— Eai amigão. — Sua fala era enrolada, e seu deboche e asco era óbvio em cada sílaba pronunciada. Havia um sorriso em seu rosto, porém qualquer um que olhasse poderia declarar o quão falso ele era. — Lembra de mim ainda? — Apontou para seu cabelo, antes negro, agora grisalho e sem vida.
— O que aconteceu com você? — fez a pergunta que estava em sua boca desde o momento que pousara os olhos na única figura feminina ali presente. — Temos muito o que conversar.
Uma risada ecoou pela sala.
— Ah, se temos — disse logo após parar de rir, se encostando melhor na cadeira e analisando o rosto do homem em pé na frente deles. Apesar de sua postura perfeita, seu rosto estava visivelmente acabado, não que isso importasse para a quebrada Elizabeth ali. — Você andou chorando meu amigo? — Ela deu mais uma risada, passando uma de suas mãos por seus cabelos agora grandes, lambendo os lábios antes de responder. — Não era você que deveria estar chorando não.
— Por favor, Srta.Veríssimo. — O tom do homem era de repreensão, porém não parecia tão forte como eles conseguiam se lembrar. Assim como todos ali, ele parecia quebrado.
— Não foi você que envelheceu esse tanto, certo?
— Por favor, Srta.Veríssimo. — Desta vez o tom foi mais alto, como se ele estivesse cansado de tudo aquilo, como se ele quisesse apenas um pouco de paz. Finalmente, a mulher parecia ter se calado. Com um suspiro, ele olha para todos ali, focando seu olhar em Cesar. — O Christofer...?
— É, ele morreu. — A voz do mesmo saiu fria, não deixando espaços para brechas ou segundas interpretações ali. Todos se culpavam pelo que havia acontecido.
— Eu imaginei... — Um suspiro, passando sua mão direita de forma angustiada em seus cabelos curtos. Ele não podia demonstrar fraqueza ali. — O que vocês tem a relatar sobre a missão?
— O Thiago também. — A voz de Cesar novamente se sobressaiu, pegando a atenção de todos ali na sala.
— Eu sei. Eu... sei. — Se era perceptível a dor nessa fala, mas nenhum dos quatro ali presentes realmente se importava com isso. O Sr.Veríssimo, antes tão imponente, agora era somente um livro aberto de dor, decepções e arrependimentos, esses que os próprios agentes ali conseguiam se ler no mesmo.
Repentinamente, Elizabeth tira algo de seu bolso, uma folha de papel onde se encontrava tudo sobre Santo Berço, a jogando de forma violenta sobre a mesa.
— Pega essa merda. — Sua vontade de chorar era perceptível, se talvez já não estivesse. — E por favor, não me chama nunca mais.
E assim, saiu daquela sala. Não parou para ouvir as considerações finais do homem em pé ali, muito menos para os chamados constantes de Joui. Não valia a pena, não valia o esforço. Estava cansada, e agora queria descansar, iria descansar.
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Uma garrafa
FanfictionPara o novo morto e em comemoração à nossa incompetência. p.o.v Elizabeth | Sadfic