Capítulo 1

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   O som do assobio de Asternik reverberou por toda a costa oeste. O fundo do horizonte estava claro demais para definir seu semblante, mas a medida que os torvelinhos traziam seu pequenino barco de metal para mais perto da margem, os pescadores conseguiram identificar o seu dono. A iluminação dourada que nascia nas profundezas do mar estava mais forte como nunca, tomando conta de todo o cenário como um manto de ouro, banhando desde os rochedos que perfilavam a costa até o farol que se encontrava na colina mais alta de toda a praia.

   O mar se mantinha calmo apesar da opulência de luz que emergia de seu interior. Asternik utilizou o próprios braços para remar, assim adiantando o processo de chegar à margem de areia.

   _ Ele não está sozinho - Concretizou o mais experiente pescador do grupo ao seu assistente. - Asternik levou alguém consigo sem minha autorização, Barnes?

   _ Não senhor! Não... - Respondeu Barnes, boquiaberto. Àquela altura, os dois já sabiam em seu íntimo o que aquilo significava. Suas faces castigadas pela vida marítima se converteram numa profunda expressão de um conhecido medo. - Senhor, isso quer dizer... talvez eu tenha me enganado. Asternik é desobediente, um desordeiro, nós bem sabemos! - Barnes retrucou, sua voz se confundindo entre preocupação e raiva.

   _ Estou nessa praia maldita há vinte e dois anos, Barnes - murmurou o líder, os olhos amargos fixos na embarcação que se aproximava. - O suficiente para saber que meus empregados não usam vestido.

   Barnes arregalou os olhos avermelhados pela água salgada. O menino passou a mão na testa, deixando-a suja de areia. Quando o barco passou por detrás do cais de madeira que cortava a costa ao meio, a sombra feita finalmente permitiu ver o terror que assomava a feição de Asternik. O pescador debatia seus braços contra a superfície do mar, como se sua sobrevivência dependesse da velocidade de seus remos carnais improvisados. Em meio ao exaspero, sua mão se agarrou à ponta do vestido e este se revelou para fora do barco: um pano azul que remetia ao algodão, com pequenos desenhos bordados. Atrás de Asternik, podia-se notar um longo emaranhado de cor escura, semelhante a fios de cabelo encharcados.

   Assim que o barco de Asternik alcançou os primeiros bancos de areia da encosta, os pescadores mais próximos mergulharam espuma adentro, a fim de atravessar a quebra das ondas. Segundos depois, eles emergiram próximos ao navegante com movimentos ágeirs de quem executava o exercício diariamente.

   Os rapazes eficientemente se dispuseram ao redor da minúscula embarcação, que começara a sentir dificuldades para estabilizar perante as ondas que batiam nos bancos de areia. Com as mãos agarradas à borda baixa, eles a puxaram o mais forte e rápido que conseguiam, porém a água que cobria até suas cinturas dificultava o processo.

   _ Contornem os bancos! Venham à margem por baixo do cais! - Ordenou o líder, de pé ostensivamente na beira da praia tomada pela cor de ouro. - Barnes, apanhe as chaves da cela.

   _ Mas senhor, e os...

   _ Barnes!

   _ Sim, senhor. Agora, senhor! - O assistente respondeu com aflição, dando uma meia-volta desajeitada e correndo para longe.

   Quando o barco de Asternik finalmente alcançou a areia macia da praia, os pescadores estacionaram a estrutura de metal por trás de um grande pilar de madeira do cais. Os rapazes abriram caminho para que seu líder chegasse, e este afundou a bota de couro no convés, provocando um estalo desagradável. Asternik se mantinha imóvel, sentado, suas mãos abertas em concha segurando as extremidades da rede de pesca que levara consigo. Ao seu lado, a trama de fibras envolvia um lânguido corpo deitado e encharcado.

   _ Hoje o peixe veio diferente, senhor - Falou Asternik com uma dose de ironia contida, um sorriso indevido se abriu frouxamente.

   _ Você deveria ter deixado essa sem nome afundar de vez. Pouparia um enorme trabalho - Retrucou o superior, demonstrando toda a insatisfação nos chutes que dava para separar a rede do vestido emaranhado.

   Por baixo da franja desgrenhada, Asternik soltou uma risada gutural.

   _ Não, senhor. Eu precisei trazê-la para que vossa majestade exerça seu poder divino - murmurou o menino, deleitando-se a cada palavra. - Ela ainda está viva.

   O homem de pé congelou numa fração de segundo. Rapidamente apanhou o empregado pelos cabelos, trazendo o rosto encardido para bem perto do seu.

   _ Estou farto de suas zombarias, sentinela. Será que o último exílio não foi tempo o suficiente? - Ameaçou, rangendo os dentes.

   _ Era um exílio? Apostei que eram férias extras pelo excelente comportamento! - Debochou Asternik, rindo histericamente enquanto o couro cabeludo esticado repuxava os olhos. - Dessa vez você não teve sorte, Haus. Você vai precisar decidir se ela vive ou não.

   O líder soltou as madeixas do rapaz com um empurrão, soltando um urro de raiva. Apontou para dois pescadores e mandou que estes removessem o mais rápido possível a rede de pesca que prendia o corpo indesejado. A medida que as tramas iam se desprendendo, o longo vestido azul era revelado como a imagem de um quebra-cabeça que se completa. Haus agachou-se assim que localizou o pescoço da jovem. Com os dedos, sentiu o pulso na jugular.

   Nada.

   "Até quando vou deixar esse moleque me enganar?" Vociferou mentalmente. Mas de repente... pulso. Lá estava, aquele ínfimo latejo de sangue obstinado a bombear seu miserável organismo.

   Haus engoliu em seco. Não havia tempo para grandes discernimentos e reflexões. A tomada de decisão era urgente, ou então o próprio tempo decidiria em questão de segundos. Enquanto os lábios dela se coloriam com roxeados cada vez mais intensos, o cansado pescador sentiu num instante todo o fardo que aquela humana carregaria se sobrevivesse. Ele encarou a própria mão, tão hábil para salvar quanto para matar igualmente.

   _ Vou provar a você que não sou Deus, Asternik. E um dia essa menina vai desejar que eu tivesse sido.


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⏰ Última atualização: Nov 20, 2021 ⏰

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Shorenan - A Humana e o FeiticeiroOnde histórias criam vida. Descubra agora