Moleque Mijão

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Moleque mijão

Autor: Lucas Soares.

Numa tarde de sábado, em um clima sereno e uma temperatura gélida, perfeita para ficar debaixo das cobertas ao prazer de ter consigo um copo de café quente e um edredom, a família Lopez – que tem sua fé, modos e alcunha atreladas ao conservadorismo supérfluo de sua religião que destilava ódio aos gays, às mulheres, à ciência e tudo mais em prol dos apetrechos de uma divindade nunca vista –, assistia a um vídeo de casamento reunida no quarto único de sua humilde casa. A família era constituída por Pedro, um senhor que já passou dos seus 40 anos e que trabalha como vigia noturno num posto de gasolina (e que, por sinal, é o único que sustenta o lar); e Alaíde, sua esposa, uma senhora um pouco mais jovem que o marido, e que, dentre todos os seus familiares e parentes, era a mais fervorosa e temente aos ensinamentos bíblicos fincados no protestantismo das igrejas pentecostais. Ambos seguiam seus átrios e doutrinas à risca, não permitindo que seus filhos, Vinícius, de 16 anos; William, de 5; e Flávia, de 1 ano não caíssem em tentação e, assim, consequentemente, não perdessem sua salvação com hábitos fúteis que difamassem a imagem social da família e sobretudo da sua graciosa crença. Eis o escopo de como são seus jovens legatários:

Vinícius, o filho mais velho, estava no momento de mais petulância, descobrindo por si só os prazeres carnais através das aventuras mais triviais que vivenciara – secretamente – junto a seus novos amigos baderneiros. Todavia, ele sempre imaginara, assim como nos desenhos animados, um capetinha e um anjinho por cima de seus ombros toda vez que se via na dúvida do que devia ou não fazer, e logo criava seus embates imaginários: o diabinho tinha uma coloração de pele avermelhada (igual ao tridente que segurava nas mãos), tinha, também, um par de chifrinhos pontiagudos pendurados à testa, com um olhar sedutor, voava como uma gárgula à meia-noite e sussurrava à sua esquerda conselhos vis que o atiçavam como: "mate aula, Vini... vá ao fliperama"; e à sua direita, um querubim com uma auréola flutuante acima de seus "cachinhos dourados", de vestes brancas cintilantes, um par de asas de pombo no dorso, e, sempre através de sua mãe, lhe soqueteava discursos como: "cerveja é a urina do Diabo, meu filho, não caia em tentação".

William ainda era inocente, mas decerto que muitíssimo inteligente; o que contrastava ele ainda usar fraldas durante a noite – logo, ninguém compreendia bem o motivo de ele não saber quando deveria ir ao banheiro, sendo que apresentava tanta sapiência para alguém da sua idade. O garoto vivia desenhando às escondidas da mãe, que sempre rasgava seus desenhos e restringia-lhe brinquedos por atribuí-los às "obras de feitiçaria" ou demonizá-los de forma esdrúxula a qualquer custo. Todos diziam que deveriam investir no menino, pois era indubitável o talento promissor da criança que mostrava já desde muito cedo dotes artísticos surpreendentes; já seu pai, rígido a sua maneira, não via aquilo como uma bênção, mas sim a maldição que herdara de Alaíde sua mãe: a imaginação (ah, a maldita imaginação). Pedro sempre enfatizava: "homem que é homem tem que se interessar por puxar uma pá ou concertar carros desde os primeiros passos e as primeiras palavras, e não rabiscar e colorir desenhos". Willie então contrapunha às ideias do pai com a seguinte linha de raciocínio: "ainda bem que não sou 'homem', e sim uma criança, então vou continuar desenhando".

Quanto a mais nova da casa, Flávia (ou Flá–Flá, como a chamavam carinhosamente), mais dormia e comia do que tudo – até por causa da pouca idade – enquanto não inventasse traquinagens com seus amiguinhos mais aventureiros daqui uns anos.

Bem, voltemos ao famigerado cômodo antes citado...

Na tarde daquele sábado, a família reunida assistiu a um DVD de um casamento o qual Vinícius, na infância – bem próximo dos seus 5 aninhos –, foi o garotinho que entregava as alianças. Pedro saiu mais cedo da festa aquele dia, pois tinha que ir trabalhar e não poderia atrasar de modo algum, até porque seu antigo patrão, Seu Antenor (um velho ranzinza, português e muito autoritário), queria a todo custo procurar algum motivo para demiti-lo na época. O luso detestava como seu empregado lhe confrontava quando humilhado por ele na frente dos outros funcionários; ambos viviam num pé de guerra. Entretanto, Pedro não quisera arrumar pretextos para brigas ou demissões porque, naquela época do casamento de seu cunhado, há pouco mais que uma década, Alaíde ainda queria ter mais um filho, então "alguém teria que arcar com os custos e arregaçar as mangas", como ele mesmo resmungava com certa soberba, mas satisfeito por ainda ter um emprego.

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