Capítulo 1 - a estrada íngrime

30 0 0
                                    

-Ainda falta muito?
Eu já não aguentava mais passar tanto tempo dentro daquela maldita van. Mal conseguia mexer os braços sem esbarrar em alguém. Não por acaso havia tanta gente fazendo aquele trajeto, o horizonte era algo realmente satisfatório de se ver.
Não sabia se sofria mais com o calor, o cheiro, a sede ou a vontade de fumar seu cigarro, mas queria apenas sair dali.

-Uns 20 minutos ainda, chefe. Pede pra moça abrir a janela aí, fazendo favor.-disse o cobrador.

Estava tão envolto em meus pensamentos que nem reparei em quem estava ao meu lado, até que ela tentou abrir a janela emperrada, sem sucesso.
Me ofereci para ajudar, ela recuou e me posicionei à sua frente para forçar a janela, que resistiu a duas puxadas antes de recuar violentamente, assustando a moça.
Não sabia se pedia desculpas ou se ria, então fiz os dois ao mesmo tempo.
-nossa, tá horrível mesmo hein... Já veio outras vezes?
-Não, é minha primeira. Estive muito ocupado desde...
-Eu também, não foi nada fácil. Tive que recomeçar a minha vida inteira, ainda mais com todo mundo morando lá embaixo.
-Ainda estou fazendo fisioterapia, meus pulmões nunca mais foram os mesmos... E mesmo assim eu ainda fumo, ótimo exemplo, né?
-Pelo menos não fede a cigarro, seu perfume ainda está forte.
-Fico lisonjeado, mas não precisa elogiar por educação. Na verdade, estou quase saindo daqui e indo a pé.
-E você vai conseguir subir isso tudo? Ele disse que ainda faltam 20 minutos.
-Só tem um jeito de descobrir.
-Eu vou pagar pra ver então. Vou contigo.
-Sério? Não precisa, vai se cansar.
-Eu sou atleta, prático natação desde antes de toda aquela água.
-Vamos então.

Ascenei então para o cobrador, pedi que parasse por um instante para descermos.

Claro que houve um alvoroço, todos indignados por ter que abrir espaço para um filho da puta passar. Engraçado como o tratamento com a moça foi diferente, mas estava tão acostumado que não me importei.

Descemos da van e começamos a percorrer o trajeto a pé. Dava para ver o mirante de onde estávamos, então não parecia tão longe. A conversa também fez com que eu não pudesse perceber o tempo.

Me surpreendi apenas quando saquei o cigarro e ela me ofereceu o isqueiro. Claro que ela leu meu pensamento com os olhos, e eu nem precisei responder nada além de um "obrigado". Meu isqueiro estava na carteira de cigarros, mas com certeza preferi usar o dela.

Houve então um misto de desabafos e risadas, até que ficamos em silêncio.

Nem me ocorreu perguntar o nome dela, estava ocupado me encantando. Não havia tido mais ninguém, nem tinha cabeça para isso, com tudo que aconteceu.

Chegamos então na entrada, e era irresistível olhar morro abaixo, vendo a última cidade da humanidade cercada por paredes de concreto.  Havia visto no jornal a extensão, que nem me lembrava.

-300 mil- disse ela
-O que?
-300 mil quilômetros quadrados. Enorme, não é? Foi incrível como construíram em apenas um ano.
-incrivel é a humanidade precisar de uma desgraça generalizada para se unir pela primeira vez.
-Você é sempre pessimista assim?
-Só quando estou cansado. Vamos entrando, o sol vai se por logo logo.

E assim o fizemos. "PICO DO NOVO HORIZONTE", dizia o letreiro na entrada. Um tanto exagerado, eu diria.
Na recepção fui cortez ao oferecer que ela se identificasse primeiro. Claro que eu só queria ouvir o nome dela.
-Seu documento por favor, senhora.
Ela entregou então o documento ao atendente, evidentemente exausto, com sua testa brilhando de suor que ressaltava as olheiras. Confesso que me identifiquei, há tempos também não conseguia dormir.

-Por aqui, Caroline.

Isso, Caroline era seu nome. Ela olhou pra traz bem a tempo de ver meu sorriso e entender que estava tímido demais para perguntar.

Esperou então até ouvir meu nome em retribuição.
-Jeito nada convencional de nos apresentarmos depois de uma hora juntos, não acha?
-Duas horas, senhor Gustavo - com um lindo deboche no seu tom -, você que enrolou demais pra puxar conversa.
-Preciso treinar minhas habilidades sociais então.

Rimos mais uma vez, enquanto caminhavamos pelo corredor, que era mais uma subida íngrime e espiral.

Finalmente demos de cara com os vestuários.
-Te vejo lá em cima.
E me virei antes que ela pudesse responder.

Me troquei, coloquei minha roupa de banho, um creme para amenizar os danos da água salgada, e me olhei no espelho.

Não gostava do que via. Como diabos a Caroline se interessou em conversar com um cara tão descuidado? Esses cachos ressecados nem se comparam aos caracóis angelicais dela. E esse olhar morto? Será que ela também o tinha quando tirava os óculos de armação fina e retangular?

Não é hora pra ficar divagando, eu esperei anos para isso.

Logo que sai do vestuário, fui em direção ao portão principal. Fascinante, com seus três metros de altura e dizeres em todos os idiomas entalhados no carvalho lustrado.
Em português bem claro, dizia "A BORDA DO HORIZONTE". De imediato me trouxe à tona todas as lembranças daquele dia.

A borda do horizonte Onde histórias criam vida. Descubra agora