Era verão. Ele detestava o verão, apesar de ser a estação do ano em que ele mais gostava porque todos andavam com pouca roupa na rua. Disso ele gostava, mesmo sendo paradoxal. Detestava o verão e o calor e porque era quente demais, tudo parecia estar prestes a derreter num piscar de olhos, a Terra virava uma sucursal do inferno; mas, acima de tudo, o calor fazia suas mãos suarem em demasia. Isso o incomodava, e muito. Era como se suas mãos fossem um anfíbio.
Estudava e trabalhava, apenas. Morava com a mãe, senhora de meia idade, negra, que levava a marca do trabalho de uma vida nos sulcos que se formavam em sua tez; atendia pelo nome de D. Lídia, era louca pelo filho, dava tudo que o ingrato pedia. (Há de se dizer que, quando digo tudo, não é tudo, mas apenas um terço do que o salário de operadora de telemarketing dela podia pagar, porque uns lerão até aqui e acharão que essa é a história de uma família abastada e que nasceu no seio da burguesia, mamando nas desventuradas tetas da classe operária e explorada diariamente. Classe proletária essa à qual D. Lídia e Cauê pertenciam.)
Divagações fazem parte de uma boa narrativa, falávamos do Cauê. Prossigamos: tinha 20 anos, era alto, cerca de 1,80m, negro (costumavam dizer que sua cor se assemelhava a um papelão molhado. Mas por vias das dúvidas e segundo descrições do IBGE, ele é negro); rapaz bem-afeiçoado, barba por fazer, bem ao estilo humanas de ser, só não usava madeixas compridas. Comumente dizia que seu estilo era um retalho de tudo, mesmo das influências musicais e culturais que não gostava, sempre sorvia e bebericava das diferentes formas de se vestir, falar, etc., até como uma forma de viver em comunhão com todos. Ainda dizia: "Se posso usar tudo, por que devo me limitar a ter um único estilo?" Sábias palavras.
Cauê e sua mãe moravam em Guaianases, bairro longínquo, remoto e tão utópico como Constantinopla, Alasca e o Morumbi. Casa humilde com tudo no lugar. Trabalhava bastante, mesmo odiando trabalhar. Dizia que estava juntando dinheiro para comprar uma TV de tela plana, essas bem modernas, que custavam o olho da cara. Depois de um tempo, conseguiu juntar a quantia necessária e comprou a bendita TV, e seu sorriso não cabia no rosto quando ela chegou; nunca seu sorriso foi tão largo como naquele momento, uma dilatação de parto. Agora poderia ver suas séries e filmes favoritos em HD, sem a interrupção indevida e natural dos ventos e chuvas que assolavam sua antena, transformando a imagem num emaranhado de profusões confusas e distorcidas, e chiados que faziam mais barulho que o trânsito ensurdecedor de São Paulo. E sua mãe, nos dias de folga, poderia ver os programas que gostava: aqueles que comercializam a morte, fazendo dessa um negócio lucrativo e banal, em que os principais participantes eram os pobres e suas desgraças, relatos da triste e miserável condição humana – ou seria a triste a miserável condição dos pobres? É de se pensar.
Cauê também estudava, há um ano, o curso de ciências sociais. Chegava tarde da noite, não obstante morava perto da estação, cerca de 15 minutos a pé dali, 5 de perua; porém, como queria – talvez não quisesse, mas por pura falta opção nessa quase pirâmide estamental que é a sociedade - economizar dinheiro, sempre ia a pé, era rapidinho. O que são quinze minutos quando se põe a pensar escutando uma música? Sempre ia correndo ou andando o mais rápido possível, sempre lembrando do paradoxo – olha o pusilânime aí de novo – que permeava sua vida na condição de negro que era: morava num bairro perigoso, e, se caminhasse lentamente, correria o risco de ser assaltado; porém, se corresse, correria o risco de ser confundido com algum bandido e, o que era bem provável, seria alvejado a tiros pela polícia, o que já era praxe nas regiões periféricas do Brasil. Não que a polícia seja racista, longe disso. Eles apenas estão fazendo o seu trabalho inibindo potências bandidos de fazer alguma vítima. Por sorte, Cauê nunca foi parar nos programas de TV que sua mãe tanto gostava.
Como dizíamos, estava indo trabalhar num belo dia de verão, aqueles que, como diz o dito popular "tem um sol pra cada um", num ônibus lotado, suas mãos suavam muito. Desceu no ponto final no centro de São Paulo, a multidão desembarcava, algo de fluvial no lerdo escoamento naquele conluio de pessoas descendo do ônibus, assim como suas mãos anfíbias. Enquanto caminhava até o serviço, que ficava ali ao lado, avistou, lá na frente, perto de uma igreja, uma mulher carregando dois sacos aparentemente pesadíssimos que relutava carregar. Pessoas avulsas passavam e trespassavam por ela como se invisível a senhora fosse. Nesses momentos em que as ações têm razões que a razão desconhece, Cauê correu até a senhora e a ajudou.
Chegando até ela, ele disse:
– Senhora, deixa eu te ajudar com isso. Parece pesado, disse pegando o saco da mão da senhora.
– Ô, moço, Deus lhe pague, viu – deu o saco e sacolejou o ombro, relaxando.
– Aonde a senhora vai?
– Ali, disse apontando pra um cantinho escondido no meio de uns arbustos.
Era uma senhora, talvez não o fosse, mas aparentava certo ar de quem levou uma vida sôfrega, doída, cheia de pesares, devia ter uns 50 anos, mas podia ter 30. Coçava o nariz a todo momento, olhos rútilos como se tivesse acabado de usar drogas.
Depois de um certo tempo caminhando em silêncio junto da velha, Cauê decide quebrar o silêncio.
– A senhora vende latinhas?
- Vendo, sim, seu moço. Tem que comprar comida pra mim e pros meus filhos comer.
– E a senhora é daqui mesmo? Deu de ombros.
– Não, vim lá do nordeste.
– Para buscar melhores condições de vida aqui?
– Também, moço. A senhora fez uma breve pausa, como se tomando um ar para contar e começou a contar sua história: Vim do nordeste fugida, sou da Bahia. Vim com meu irmão
Cauê, consumido pela curiosidade, pergunta:
– Fugida por quê? Disse levantando a sacola até a altura do ventre, redistribuindo melhor o peso com as duas mãos.
Rilhando os dentes, a senhora disse, com certa dificuldade:
– Porque, moço, eu e meu irmão éramos...- tomou mais um ar e continuou -éramos estuprados por nosso padrasto desde os 10 anos de idade. Viemos pra cá com 15. Levávamos uma vida miserável lá e a labuta continua aqui. Tenho 3 fio agora e a gente mora no meio do mato, as coisa não melhoraram muito como o sinhô pode vê. Tenho problema com cocaína também, já fui internada três vezes numa clínica, mas sinto saudades dos meus fio e sempre acabo voltando. A saudade é muito, não dá pra aguentar. E tem a mais pequena, tem 1 ano, a coisa mais linda. Enquanto eu tava lá meu marido cuida das crianças, aquele porco nojento.
Atônito e sem ter palavras, perguntou:
– E cadê seu irmão?
– Num sei. Se não tiver preso, tá caído em alguma vala bêbado por aí com água do esgoto entrando pela boca, disse isso com um certo ar de recato, como se fosse uma daquelas certezas eternas. -Mas sabe, moço, eu tenho fé em Deus e sei que as coisa vai melhorar, soltou um sorriso alado, desses que não se vê todo dia.
Mesmo no alto da sua descrença em seres místicos, Cauê, como alguém que se sente fadado e sem o direito de roubar as esperanças de alguém, proferiu:
– Com certeza. Tenha fé em Deus, tenha fé na vida, como diz a letra da música, e deu um sorriso diligente de volta.
Depois de quase 10 minutos de caminhada até a casa da senhora -se é que podemos chamar de casa um lugar tão desumano como aquele –, ele devolveu o saco cheio de latinhas pra senhora e ela agradeceu:
– Deus lhe pague, moço.
– Obrigado, proferiu com um sussurro breve e seco.
Cauê passou o resto do dia pensando naquela senhora e como a vida é permeada de isonomias e dureza pra uns, enquanto para outros, que vivem dentro de suas bolhas isolados do mundo que os cerca, fingindo que certas coisas não acontecem, vivem uma vida mais fácil. Lembrou-se também de um burguês que, aos 25 anos, já era formado em economia e história, viajava para o exterior frequentemente e depois de um tempo, cansado da vida docente, largou tudo e virou ator, aos 30 anos. A conclusão do Cauê foi a mesma que os leitores, se é que os tenho, devem estar pensando agora: por que um pobre, aos 20, mais ou menos, tem que escolher uma carreira, mesmo que não goste, mas pura e simplesmente a escolhe para ganhar dinheiro, o que nem sempre todos conseguem, tornando-os adultos frustrados, precisa escolher uma profissão tão cedo e segui-la para o resto da vida, sem opções de volta, enquanto um burguês pode fazer tudo ou não fazer nada, afinal, pra eles não faz muita diferença.
- Vida injusta, disse de si para si.
Cauê continuou pensando nessas e outras questões que desencadearem em outras questões antropológicas. E uma centelha de felicidade preencheu seu coração, mesmo que por um instante, por saber que fazia ciências sociais pelo motivo certo: poderia ajudar mais pessoas como aquela senhora, como tantos outros da sua cor, todos que passassem por dificuldades ele ajudaria de alguma forma. Disso ele tinha certeza.