INOCÊNCIA

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Conheci dona Inocência há uns dois anos, quando cheguei de mudança ao pequeno sobrado amarelo da rua Quaresmeira, num bairro antigo, nobre e muito valorizado. Tinha tido muita sorte de conseguir por um preço acessível uma moradia tão boa. Minha primeira casa própria. Eu estava radiante de satisfação. A velha morava a treze passos, em um casarão desbotado, do outro lado da rua.

Enquanto eu corria de um lado a outro feito barata tonta, abrindo caixas, retirando pó dos cantos e montando prateleiras, a mulher assistia ao movimento do sobrado recostada ao portão de sua residência. Duas ou três vezes cheguei à sacada para cumprimenta-la e acabei mudando de ideia. Estava ocupada demais para perder tempo com apresentações, o que deixei para depois.

Eu esfregava um pano com álcool na vidraça do segundo andar quando ouvi, quase sem querer, as conversas da velha com os transeuntes.

─ Oi Amélia. Para um pouco aí, menina. Deixa de tanta pressa. Me conta da tua tia lá de Minas. Ela sarou da alergia?

─ Oi dona Inocência. Sarou sim. Graças ao bom Deus. Mas não posso parar pra conversar hoje, tô com consulta marcada. Desculpa...

A velha ainda tentou duas ou três vezes puxar mais assunto, mas a outra não se deixou convencer e seguiu caminho sem desacelerar.

Dois minutos depois um velho, montado numa bicicleta barulhenta, que rangia a cada pedalada, caiu na besteira de atender ao chamado da idosa. Ali ele ficou, por sobra de tempo ou excesso de educação, mais de uma hora, ouvindo os desabafos e histórias da infância da mulher.

Terminei as vidraças e passei a guardar as roupas no armário, onde continuei, já curiosa e achando graça, a prestar atenção na vizinha da frente.

Dois garotos distraídos subiram a rua arremessando, de um para o outro, uma bola de futebol. Num chute mais empenhado, o mais velho fez a bola voar sobre a cerca e enterrar-se numa moita de hortênsias no quintal da conversadeira. Ela, que havia saído por instantes, acredito que para molhar as cordas vocais, logo apareceu balançando os cachos azulados.

─ Ô dona. A senhora pode devolver a nossa bola?

─ Eita! Vocês me amassaram foram as hortênsias todas. Têm que tomar mais cuidado.

─ Desculpa. Foi sem querer, tia. Pode devolver, por favor?

Dona Inocência abraçou a bola e sorriu para os meninos.

─ Vocês têm tempo pra ouvir umas histórias boas? – e lá se foram duas horas e meia de histórias. Mas não posso dizer que eles não tenham gostado. As gargalhadas me fizeram acreditar no contrário.

E assim foi aquele domingo, meu primeiro dia de casa nova, uma caça à laço de dona Inocência a quem passasse na rua. Nos dias seguintes ela sempre acenava assim que me via. Recebi sua primeira visita oficial uma semana depois.

─ Vim desejar boas-vindas. Gosta de torta de banana?

Ela entrou sem cerimônia e discursou por quase quatro horas. Não que a conversa com ela não fosse prazerosa, não mesmo. Ela era uma excelente contadora de histórias com sofisticada pitada poética. Transformava com facilidade uma ida ao dentista numa comédia. Um fim de namoro juvenil numa tragédia. Uma receita de bolo num poema.

─ Catarina, minha filha – ela disse – Você tá no paraíso. Foi meu finado Jerônimo que construiu esse casarão do jeitinho que eu queria. Viu que tô reformando? Troquei o piso e vou pintar ela todinha.

─ Olha só. Que legal.

─ Minha casa foi a primeira da rua. Veja que a violência cresceu por aí, mas aqui, na rua Quaresmeira, aqui você pode dormir sem cadeado no portão e de janela aberta. Notou que nossa rua não é passagem de tráfego? Por isso essa paz, esse silêncio. Eu me mudei pra cá quando casei, aos dezessete anos, e é aqui que quero morrer. No meu velho casarão... Não vou arredar o pé, nunca – ela disse, num sorriso de orelha a orelha.

InocênciaOnde histórias criam vida. Descubra agora