a carona

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Eu a vi pela primeira vez em um dia chuvoso. O céu estava nublado e era possível ver alguns raios à distância, se aproximando aos poucos. Eu precisava ir embora, estava na faculdade desde às duas horas da tarde, mas não havia jeito de sair sem o guarda-chuva – que não havia levado, mesmo após minha mãe me auxiliar a levar -.

Quando estava pronta para voltar à faculdade e me proteger dentro da biblioteca, eu esbarrei nela.

A garota começou a se desculpar repetidas vezes enquanto juntávamos nossos livros. Ela estava agachada no chão à minha frente, pegando meu livro sobre o comportamento humano, quando reparei melhor nela.

Seus cabelos eram loiros e curtos, apenas uma franja longa caindo no seu rosto e atrapalhando minha visão de sua face. Quando ela virou para o lado direito, encarando o estacionamento da faculdade, percebi que ela tinha um sidecut. Ela me entregou os meus livros e pegou os seus com um sorriso de dentes retos e brancos, e pediu desculpas mais uma vez, mas não fez menção de se afastar, então ficamos uma de frente para a outra, apenas nos encarando, enquanto atrapalhávamos o fluxo da saída dos estudantes.

Ela deslizou os dedos pelo cabelo e encarou o estacionamento mais uma vez antes de me olhar.

— Você tem como ir pra casa? — ela perguntou e eu apenas neguei rapidamente com a cabeça, de repente sentindo-me tímida sendo encarada por seus olhos escuros, pretos como petróleo. — Quer uma carona?

A pergunta era inofensiva, mas ela perguntou fazendo uma careta, talvez sentindo-se insegura em me questionar aquilo, sem nem me conhecer direito.

Eu queria dizer sim, porque sinceramente não sabia que horas sairia daquele lugar, mas foi seu olhar que me impediu de aceitar.

Parecia que queria que eu dissesse não, de alguma forma.

— Vamos — ela pegou meu braço, como se fôssemos íntimas e puxou um guarda-chuva que estava preso na alça da sua mochila.

Seguimos juntas, os braços grudados, embaixo do guarda-chuva vermelho. Ela tinha um cheiro bom, de canela e um leve odor de cigarro.

— Não repara na bagunça, por favor — ela disse, antes de abrirmos as portas para entrarmos.

Quando entrei, percebi o porquê, mesmo oferecendo carona, ela havia ficado estranha, quase como se quisesse que eu recusasse. Seu carro era uma bagunça. Havia duas sacolas com roupas no banco de trás e no chão, por quase todo o carro – apenas os seus pés estavam seguros da sujeira – caixas de encomendas abertas agressivamente, sacos pardos do McDonald's – três, no mínimo – e papéis de bala de uva.

— Desculpa pela bagunça — consegui ver, pela claridade do dia, apesar de a chuva fustigar os limpadores de para-brisas que precisavam agir mais rápido que a chuva, que todo seu rosto pálido corou. Ela estava envergonhada.

— Não tem problema — eu pigarrei, enquanto tirava meus pés do caminho das embalagens vermelhas de batata frita e expliquei a ela como chegava até a minha casa. — Espero que não saia do seu caminho...

— Imagina — ela tirou a mão do volante por alguns segundos para fazer um gesto de desdenho com a mão.

— Então... Qual seu nome? — eu perguntei, erguendo a sobrancelha para a minha carona e ela virou o rosto para mim e sorriu, sem mostrar os dentes perfeitos.

— Manoella. Mas pode me chamar de Manu — ela deu uma piscada e eu apenas assenti, ignorando seu olhar e encarando a estrada à frente. — E você?

— Rafaella. Mas pode me chamar de Rafa — eu tentei dar o meu melhor sorriso, mas Manu estava concentrada na direção.

Eu sabia que faltava pouco para ela virar na minha rua, mas, de repente, tive vontade de continuar ali, no seu carro sujo.

Apontei para a minha casa e a olhei como se fosse a primeira vez olhando para aquela casa, como Manoella a via naquele momento. Tentei não me sentir intimidada, afinal, era só uma casa, mas a opinião da garota desconhecida parecia muito mais importante. Lá dentro minha mãe me esperava, provavelmente ajeitando a janta enquanto meus irmãos estavam no quarto que dividiam fazendo os deveres. A casa tinha um andar e um pequeno quintal, tão pequeno que a única coisa que cabia ali era a escultura da branca de neve, que já estava velha – alguns pedaços haviam quebrado devido o tempo e meus irmãos, dois pestinhas -. A casa foi pintada há mais de quinze anos, quando meu pai ainda queria ser meu pai e então reparei em todas as partes manchadas, na infiltração aparente do lado de fora e a tinta descascada no pequeno muro, que às vezes algumas pessoas sentavam, por ser baixo e próximo ao ponto de ônibus, e tínhamos de intimidá-los de alguma forma.

Ela não disse nada, sequer perguntou algo. Apenas me encarando com aquele sorriso.

— Você quer o guarda-chuva emprestado? — ela perguntou — Ou posso te acompanhar até ali, se quiser.

Apesar de ser adulta – dezenove anos, quase vinte – e minha mãe não se importar muito com minha vida, fiquei receosa em aceitar a segunda sugestão. Eu não queria que ela visse de perto todas as imperfeições da casa, ou que escutasse meus irmãos falando palavrão.

— Eu aceito o guarda-chuva — eu disse, embora não me importasse em me molhar com a chuva, era tão perto que não faria diferença, mas eu não queria ser rude.

E eu queria ter um motivo para vê-la novamente.

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