Ela foi o motivo da minha doce morte.
Eu morri nas ruas movimentadas da grande São Paulo recebendo facadas por todo o corpo enquanto a lua iluminava o momento com aquele branco frio que faz uma vez ao mês. Eu vi ela fugir, deixando o celular no chão e depois aquele maldito sujeito ir atrás dela com seus companheiros. Eu não vi o rosto deles, eu só prestava atenção nela. O jeito que ela estava linda aquela noite, com aquele vestido azul que imitava as antigas costuras orientais, com pouca maquiagem afinal ela não gostava de exagerar. Eu consigo lembrar de tudo, seu cheiro de perfume caro dado de presente pelo seu pai, o gosto de maçã do batom que ela passou de forma tão sutil e, ah... eu não posso esquecer... posso ser rude, mas o jeito que ela viu meu caixão descer e ser lançado aos sete palmos era algo que me deixou encantado.
Os cabelos pretos e bem alisados estavam muito bem arrumados com aquela roupa preta enquanto Rafael, meu melhor amigo era agora seu ombro para todas as lamentações e angustias. É uma sensação estranha, eu estava olhando meu corpo dentro de um caixão, e ninguém me via ou ouvia. Eu tocava as paredes, mas não as pessoas, essa era a sensação de estar morto(?).
Mas, há uma coisa em meio a isso tudo que não entra na minha cabeça...
Como eu estou aqui, agora e sendo visto pelas pessoas? Eu estou de volta onde eu morri. No mesmo lugar, na mesma pose, entretanto em plena a chuva. Os letreiros não me enganam, era dia 20 de outubro quando eu morri, mas foi no dia 19 de novembro em que eu voltei, "vivo". Minha única espectadora foi a lua cheia, ela contemplou minha morte e agora vê de camarote eu estar de volta no mesmo lugar.
Agora eu posso ver ela, minha doce Karen que perdi a um mês. Minha conta bancaria ainda estava lá e eu lembrava as senhas, então comprei minhas melhores roupas. Para que muitas se a mulher mais linda desse mundo deve ter mantido algumas? Estou confuso, feliz e provavelmente ficarei eufórico ainda hoje. Eu não espero a hora de tocar ela mais uma vez, sentir seu cheiro e seu calor em meus braços e respirar o ar daquele pescoço pálido que tanto me fascinou em vida. Eu me sentia vivo quando estava ao seu lado, e agora, me sinto vivo para mais uma vez ver ela. Ela sempre disse "experimenta cabelos compridos, ficaria lindo em você" e por algum motivo, eu tenho esses cabelos agora. Acompanhados de uma barba, o que era esquisito, eu morri muito bem higienizado ao que eu me lembre.
Para uns o sobrenatural de todo esse meu novo hoje era o que estava por vir. Eu fui atropelado por um carro em meio a Augusta, onde todos os bares viram meu corpo voar como um boneco que é lançado por uma criança. Eu não me machuquei de nenhuma forma, apenas me levantei e continuei meu caminho, não houve dores nem hematomas. Ruas adiante, não demorou para chegar em nosso condomínio e ter a bendita sorte de ver o portão aberto sem nenhum vigia ou conhecido. Eu evitei os elevadores, haviam muitas câmeras e por isso optei pelas escadas. Não havia fadiga em subir correndo esses degraus que em uma espiral subiam rumo o terraço do prédio, sorte era não precisar subir até lá.
Quando cheguei em nosso corredor e vi todas aquelas portas brancas, minha mente me pregou peças que pareciam ter um significado. Era uma voz, irritada e ao mesmo tempo cansada dizendo apenas a mesma palavra:
- Poupe-se.
Cada passo que era dado fazia aquela palavra se repetir mais e mais vezes até chegar a um nível onde minha cabeça ardia de tanto ouvir isso. O que acontece? Ela é tudo para mim. Ela é onde tudo começou a dar certo na minha vida. O que há em meu peito que evita esse encontro?
- Precisa de ajuda, senhor?
Obrigado!
Minha mente ficou limpa mais uma vez, e agora posso girar essa maçaneta e ver ela, minha esposa que tanto amo. A porta estava aberta, afinal ela nunca trancava quando estava lá. Nove horas da noite e ela acordada? Ela deve estar vendo seus filmes enquanto come um pesado pote de sorvete em seu colo. Podem estar pensando "você vai simplesmente dizer um oi?" e eu lhes digo, vou imitar um filme que ela me fez assistir sete vezes em nossa lua de mel e nele, o mocinho reaparece depois de todos pensarem que ele morreu, como? No sofá tocando a música que todos conhecem.
A sala, o banheiro e a cozinha estavam vazias e assim eu resolvi botar em prática meu plano. Eu arrumei para nós a sala para aproveitarmos logo em seguida. Vinho caro que eu disse que só abriria para uma ocasião especial, o doce de leite que ela ama tanto já colocada em torradas light e duas colheres que eu usei para tocar nossa música. Ela ama Sinatra, e eu fiz questão de aprender a letra de todas as músicas antes de... morrer.
Comecei pela melhor e que melhor se adequa para agora, a clássica "I Love You, Baby".
Mas ela não veio.
- Poupe-se.
Então toquei "L.O.V.E." do início ao fim. Eu imaginava o dia em que dançamos essa música juntos em uma festa da sua família e por acidente caímos na piscina. Foi um dia alegre, afinal foi no casamento de meu amigo Rafael com a irmã de Karen.
Ela também não veio quando terminei de tocar essa música.
- Poupe-se.
Chega, talvez ela esteja dormindo. Eu não poderia lhe acordar se ela estivesse dormindo e por isso eu decidi apenas espiar pela porta de madeira. Estava um pouco aberta com aquelas paredes bege cheias de quadros que ignorei por desdém. Eu ouvia um som de seu quarto, era sua voz seguindo um ritmo que eu não ouvia e sentia a muito tempo. Cansada, como se derretesse ao dizer: mais.
Ela era a mulher mais perfeita de todas, não há nenhuma outra igual a ela. Por algum motivo, não tive necessidade de acender a luz daquele quarto iluminado por linhas vermelhas que deixavam clara aquele seu corpo magro e cheio das curvas se sujeitando a ficar ao chão enquanto ele, aquele que era meu melhor amigo, lhe batia com força enquanto ela pedia por mais. Eles não me viam, que sorte, não é? Eu não quero ser um incomodo ressuscitado como poderia ter sido enquanto vivo.
Eu nunca lhe vi daquele jeito, selvagem e cheia de estase. Ah... ela geme tão alto, e se coloca em cada pose absurda que me faz pensar o motivo de ter voltado a vida. Rafael toca ela de todos os jeitos, lambendo os dedos que lhe penetram antes de usar o principal para continuar a brincadeira de adultos. Eu nunca vi ela chupar e lamber tão cheia de emoção como estava fazendo, indo e voltando enquanto brinca com aquilo na sua bochecha, respingava gotas da sua baba no chão. Seu rebolado, em meu colo era algo magnifico, mas para Rafael estava sendo extraordinário ou até banal.
Eu estive morto por um mês, porém aqueles quadros que estavam pelas paredes me deixavam preocupado se em menos de um mês ela pôde amar meu melhor amigo como me amou... aqueles peitos brancos eram tão macios quando eu lhes chupava, ver Rafael bater neles e fazer com que Karen desejasse mais, me fazia pensar se já era comum ou novo tudo o que acontecia enquanto eu me afastava.
Eu estava no terraço, sem saber o que fazer diante de tudo aquilo que vi e analisei. Para mim, aquela mulher era tudo e muito mais que o infinito. Ela era os motivos de jamais ter desistido dos meus sonhos, foi ela quem me salvou de meus maiores inimigos: eu, mim, e minha pessoa.
Eu memorizei suas músicas favoritas, aprendi a tocar violão por causa dela e agora percebo uma coisa... ela era meu farol, mas percebo agora, para ela eu não era nem ao menos um porto. Talvez, ter ficado morto e jamais retornado para o apartamento onde o meu passado em forma de pessoa estava foi um erro. Ouvir minha consciência "poupar-me" era algo que eu deveria ter feito assim que ouvi pela primeira vez.
Eu fui atropelado e continuei de pé, eu fui esfaqueado e voltei exatamente para onde morri, mas o que importa morrer e renascer se não posso ter nada do que quero, nada do que tive e agora não passo de um estranho que não pode se apresentar para ninguém? Eu escolho morrer mais uma vez, torcendo para não voltar.
Eu saltei do terraço, senti o vento abrir caminho para mim enquanto olhava quais eram os pingos de chuva que me acompanhavam nessa queda livre. E pensar que eu comprei um terno para ver minha esposa transando com meu melhor amigo. Eu cheguei ao chão sentindo tudo e nada ao mesmo tempo.
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Ela era meu farol
Short StoryEle morreu por amor, de alguma forma voltou, mas para quê?