Capítulo 1

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Aos cinco anos, a escola era o melhor lugar do mundo.

Havia o frescor da manhã, a visão da neblina passeando pelas montanhas bem acima da minha cabeça, a mão de minha mãe balançando meu braço pra lá e pra cá, me guiando pela calçada cheia de rachaduras. Ela me contava sobre um modelo novo de suspensórios que vira em alguma vitrine e não tinha dúvidas que combinaria muito comigo. Me animei com a ideia, e ela deve ter percebido, porque sorriu para mim, parando apenas para tragar seu cigarro. Eu não sabia o que era um cigarro àquela época. Sabia que cheirava a tudo de ruim, e não conseguia relacionar aquilo com algo tão doce como minha mãe. Não entendia por que aquele ritual era tão importante para ela, não sabia se ela gostava de engolir aquela fumaça pútrida ou fingia que gostava. Sabia, porém, que havia algo de errado. Havia os sussurros de outras mães, mulheres carregadas de falsa complacência, murmúrios sobre o quão triste deveria ser a minha vida. Coitadinho, filho de uma mulher como aquela. Então elas arrastavam seus filhos depois da aula, urgindo por mais um gole daquele licor envelhecido antes que seus maridos chegassem em casa.

Apesar disso, posso afirmar que minha mãe não foi o motivo pelo qual me apaixonei pelo sabor do alcatrão em meus lábios, ou pelo cheiro duradouro da fumaça que não queria deixar minhas narinas. Espero que ela saiba disso quando me arrastarem para algum tipo de clínica de reabilitação.

Ainda assim, naquela manhã em questão, apesar da fumaça fedorenta, podia sentir o oxigênio purificando todos os cantos do meu corpo, e me sentia bem. Minha única preocupação era como seria minha professora, como ela usava o cabelo, se seria gentil ou dura, se eu faria amigos e se o parquinho era divertido o suficiente. Quando minha mãe me deixou na porta da escola e não disse que me amava, como de costume, me senti crescido, maduro e sozinho. 

A professora era uma senhora de meia idade e cabelos avermelhados, estranhamente escorregadios. Tinha uma voz grave e confortável e olhar tranquilo, como uma mãe. Ela me guiou pela sala de aula, um cômodo amplo, de teto alto, as paredes cobertas por estantes de livros, revistinhas penduradas em um varal e infinitas caixas de coisas coloridas - lápis, tinta, matéria prima. No centro ficavam as mesas quadradas, cada uma comportando até três crianças. No primeiro dia, sentei-me com uma garotinha pequena e de tranças castanhas. Ela gostava de desenhar passarinhos e fazia isso muito bem. Ao meu lado, um garotinho rosa de cabelos loiros que aparentemente gostava muito de falar; e, a minha frente, o garoto branquelo de cachos extremamente pretos, que formavam uma cortina entre ele o resto do mundo toda vez que ele abaixava o olhar. Suas roupas estava sempre alinhadas e ele cuidava muito bem dos seus materiais. 

Aos cinco anos a escola era o melhor lugar do mundo e eu fui o único amigo de Willem durante muito tempo. Eu lhe expliquei a moral da história do patinho feio enquanto ele insistia que era uma história boba e sem sentido. Ele me mostrou seu caderno de capa marrom onde catalogava diversos tipos de folhas de árvores, enquanto me explicava a história de cada uma, como se fossem achados raríssimos, e talvez fossem. 

Aos dez anos, a escola era um lugar caótico.

Eu não entendia por que aquele ritual se repetia com tanta frequência. Geralmente acontecia no fim da última aula, aquela hora da tarde em que ainda não é noite mas não existe luz o suficiente pra chamar de dia. Começava com uma banalidade, um garoto alto "acidentalmente" trombando em Willem, um cruzar de pernas no momento errado ou um sorriso de dentes afiados (na época eu não sabia o que era um sorriso de escárnio). O próximo passo não tinha muitas variantes: eram braços que puxavam e arremessavam meu amigo contra qualquer coisa que machucasse, risadas graves e gritos extasiados. Acabava com cachos grudados de suor e sangue, o uniforme desalinhado, a lama e o olhar resignado de quem acreditava que talvez não merecesse muito mais que isso. E tinha eu, seu único amigo e mais fiel espectador, vendo sangue escorrer e desejando colocar cada gota de volta a seu lugar. Ao invés disso, acompanhava cada soco e pontapé com os olhos cansados de quem já assistiu o mesmo filme centenas de vezes e sabe muito bem o final. 

Minha mãe me falava "fique longe de encrencas"; minha professora me falava "fique longe de encrencas"; as pessoas sensatas nos desenhos animados me falavam "fique longe de encrencas." E lá estava eu, fugindo da encrenca e vendo meu único amigo sangrar pelo nariz, ouvindo seu corpo ranger como uma cadeira velha ao se levantar. Apesar disso, posso afirmar que não foi aquele garoto dos punhos de ferro que me ensinou a ver beleza no vermelho do sangue, mas com certeza me ensinou algumas verdades duras sobre os homens. Queria que ele soubesse disso quando me arrastarem para um presídio sujo.

Era sexta feira, outono de 39, quando Willem foi me visitar após uma sessão secreta de socos e cuspes e sangue. Pelo caminho, conversamos sobre a petulância das árvores nuas, expondo-se daquela forma para o vento; sobre como as nuvens realmente pareciam nuvens, algo real, tridimensional e palpável, não meras rajadas de tinta branca derramadas num pano azul. Falávamos sobre tudo, e todas as vezes que ele abria a boca eu podia jurar que a própria natureza conversava comigo. De olhos inchados, uniforme amarrotado e tudo. Minha casa era suficientemente grande para uma mãe solteira, um garoto de poucos pertences e uma irmã semi-nômade. Quando passávamos a tarde juntos, esparramados pelo carpete do meu quarto, líamos T. S. Eliot um para o outro, parando entre algumas estrofes para chamá-lo de idiota. A gente só não conseguia entender muita coisa que ele dizia, mas era divertido fingir que éramos garotos normais. Fomos ficando muito bons nisso, fingir. Willem contava sobre a menina nova da sala ao lado, de grandes cabelos loiros e sardas no rosto. Eu fingia que não sentia medo de ser trocado e que meu sorriso não era totalmente vazio. Minha mãe parava à porta de vez em quando, checando se estávamos bem, e àquela época eu não me perguntava se o sorriso que ela abria era tão vazio quanto o meu.

Será que ela percebia? Que seu filho se sobressaía às outras crianças da sua idade, mas não de um jeito bom. Zero interesse pelo mundo ao redor, o desconhecido. Zelava pelo que era meu, me sentia sortudo e não podia me dar ao luxo de ver minha sorte escorrendo pelos dedos. Passava muitas horas da minha semana deitado sobre minhas costas, na minha caminha de criança, pensando em formas de agradar Willem, minha mãe e - às vezes - minha irmã. 

Aos dez anos, a escola era um lugar confuso, e eu me lembro de olhar para Willem e pensar que ele era a pessoa mais linda e maravilhosa que eu já conheci. Não sabia dizer o porquê, contudo, mas sabia que sentia ódio ao mesmo tempo. Odiava ver seu rosto pálido e suas feições em perfeita coexistência desfigurados por mãos sujas e doentes, do mesmo tamanho das nossas. Odiava ter que ouvir seus lamentos atrás da escola, o bônus após a sessão de pancadas. Odiava quando ele suplicava para nunca mais sentir dor de novo e não saber o que fazer em relação a isso. Consegui dar nome ao sentimento de ódio antes de qualquer outro, e talvez isso diga bastante sobre mim.




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⏰ Última atualização: Dec 25, 2023 ⏰

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