E se...

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Eram os dias em que a bílis governava os corações de gente de bem, o fogo governava o Pantanal, a ignorância, o Palácio do Planalto, e a COVID-19, tudo.

"Tempos difíceis", diz Dona Déa, conspícua, acompanhando mais uma vez o noticiário matinal. Assenti com a cabeça, mas sem desviar os olhos do celular — marquei a Cindy no vídeo Como fazer sapatos de garrafa pet. Minha mãe faz um muxoxo ante a nova manchete na tela da TV. "Olha isso, menina, cada dia que passa, fica claro que esse governo só nos garante duas instituições: o manicômio e o cemitério". Assenti de novo, ainda absorta naquela Caverna de Platão moderna — enviei para a Bela o link da reportagem É dos feios que elas gostam mais? seguido por pequenas caras amarelas de riso.

"Ei, menina!", gritou Dona Déa, lançando uma almofada para evocar atenção. Levantei os olhos. "O que foi, mãinha?" Os olhos dela ficaram pequenos, prontos para amaldiçoar a única filha pela falta, no entanto, calou-se, como se compreendesse algo que só as mães são capazes de compreender. "Aconteceu alguma coisa?", insisti. Ela fechou os olhos por um segundo e, após respirar profundamente, voltou-se para mim. "Você devia usar esse celular para ler a Constituição, não sabemos qual parte o presidente vai rasgar amanhã", aconselhou. "Mãinha, eu..." ia falar que já era mulher feita, formada em Direito, mas a notificação de um novo e-mail do Banco fez o celular vibrar e tive que abrir a mensagem.

"Misericórdia, mãinha, meu nome está no SPC", espumei, tentando puxar na memória alguma dívida que valesse a pena tal afronta.

"Melhor no SPC do que na boca do sapo", garantiu Dona Déa.

Naturalmente, não tive tempo para digerir esse deboche travestido de provérbio, porque o relógio digital da TV alertou minha mãe para o único evento necessário daquele dia: "E nem pense em ir ao Banco fazer barraco, você prometeu que levaria os doces hoje cedo. Sua avó já deve estar lá agoniada de tanto esperar."

...

Quando o aplicativo notificou a chegada do carro solicitado, eu agarrei depressa a cesta de doces de Cosme e Damião e abri a porta para sair. Lá da sala, minha mãe gritou alguma coisa. Ao notar meu sorriso no espelho do corredor do prédio, entendi e retrocedi os passos. Aborrecida pelo próprio descuido, corri até o varal da área de serviço e, sem soltar a cesta para não a esquecer pela casa durante o processo, peguei a primeira máscara que encontrei. Apressei o passo no momento em que o celular vibrou com várias notificações do motorista no chat. Digitei moço, pelo amor de Deus, não cancela, tô descendo, mas meu pensamento era se cancelar, arrasto você e esse carro na unha.

Na portaria, antes de entrar no carro, varri com os olhos os detalhes da viagem informados pelo aplicativo para confirmar se era de fato o pacote econômico, se a placa e o modelo do carro eram os mesmos, se a foto do perfil batia com a parte visível do rosto... E acabei parando no nome do motorista — Wolf. Olhei para a cesta de doces. Se estivéssemos em outro tempo, se isso aqui fosse uma floresta, eu indo até a casa da minha avó..., comecei a pensar nas variações possíveis até que a buzina explodiu nos meus ouvidos.

"Vai entrar ou não, Vermelho?", perguntou o motorista, irônico.

Fiquei em choque. "Vermelho?"

Sem cerimônia, ele sinalizou o vidro da janela traseira, no qual pude ver meu reflexo. "É a mais nova comunista do bairro", alguém na rua gritou. O motorista riu baixinho. Eu quase tive uma vertigem. De fato, era vermelho-sangue — o vestido e a bendita máscara que peguei aleatoriamente pareciam formar um perfeito uniforme revolucionário. Cheguei até a olhar o interior da cesta, desconfiada, em busca de um martelo e uma foice em vez de doces. Revirei os olhos, interrompendo o delírio coletivo desses tempos antes que ele se alastrasse pela minha mente.

"Gente, é Cosme e Damião, vou entregar doces com minha avó!", arrematei, como se confessasse um segredo àquele novo mundo de doidos. Por fim, entrei no carro, dizendo vovó adora verde, então eu uso vermelho, simples assim, mas pensando um vestidinho preto me deixaria muito mais magra.

VERMELHO-COMUNISTAOnde histórias criam vida. Descubra agora