Capítulo Único

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Fechou os olhos.

Respirou fundo.

A secura em seus pulmões a incomodou. Há quanto tempo não parava para respirar daquela maneira? Parecia enferrujada.

Seu coração ia se acalmando enquanto ela prestava atenção nos batimentos. Os dias fugiam de seu controle, o corpo inteiro movia-se no piloto automático e não sabia mais o que era se sentir descansado, como se pequenas descargas elétricas subissem por sua pela deixando-o sempre alerta.

Mas naqueles raríssimos momentos em que fechava os olhos e respirava profundamente podia se lembrar de que continuava sendo humana. Ou algo perto daquilo.

Ana abriu os olhos e encarou seu reflexo no espelho. Observava a própria face como se fosse a primeira vez que a via. Cada vez parecia a primeira vez. Talvez sempre fosse a primeira.

Fechou os olhos de novo e procurou ajeitar dentro do peito o turbilhão de sentimentos, tentando colocar ordem em sua ansiedade enquanto buscava alguma prova de que continuava sendo a mesma pessoa que sempre fora.

Às vezes se esquecia, não era fácil se achar depois de se perder tanto.

Encarou novamente o reflexo e experimentou sorrir. Parecia outra pessoa. Seus lábios eram familiares, seu nariz era familiar, seus cabelos... Mas a pessoa por trás de seus olhos era uma desconhecida.

Uma desconhecida que estava tirando Ana do sério.

Talvez fosse melhor afogar aquelas ideias, fingir que nada estava passando pela sua cabeça e apenas colocar sua melhor versão, a máscara de boa filha, de esposa exemplar. Não da vadia sem coração que fazia tempestade em copo d'água ou seja lá qual parte dela queria se mostrar naquela noite.

Ela passou os dedos pelo rosto, puxando a pele para baixo, tentando sair daquele transe. Não funcionou, então fechou os olhos mais uma vez e respirou fundo.

Por que era sempre ela que tinha que se comportar?

Deu descarga na privada e lavou as mãos para disfarçar o tempo que havia gasto ali dentro. Então saiu em silêncio, a expressão mais leve possível para não deixar tão na cara como tudo aquilo a incomodava.

Era véspera de natal, aquela comemoração que a família do seu esposo parecia viver para. A época do ano onde todo mundo vestia a máscara da hipocrisia e fingia ser uma boa pessoa, como se bastasse ser bom apenas nos últimos dias do ano.

Ana voltou para a sala e caminhou até seu esposo que conversava muito alto com os irmãos. Ele fez um gesto para chamar a atenção dela, então pediu em silêncio com os lábios para que ela buscasse uma bebida para ele.

Ela apenas concordou e desviou o caminho para a cozinha. Lá sua sogra conversava com a outra nora que tentava amamentar o filho. A sogra nunca gostou muito de suas noras, nem nunca conseguiu fingir que sim. Ana sabia que havia um certo divertimento na forma como ela as tratava, com aquele ar de superioridade, como se ambas fossem desprovidas de inteligência. Ela com certeza pensava que os filhos não conseguiram se casar com ninguém melhor do que ela, mesmo que Ana já tivesse buscado a sogra caindo de bêbada em um bar de terceira na cidade.

Abriu a geladeira e pegou a cerveja. Sem falar nada, saiu, fingindo não ver o olhar de gozação da mulher sobre ela. Seu esposo estava no mesmo lugar, falando no mesmo tom alto que a incomodava tanto. Entregou a cerveja para ele e se prostrou ao seu lado, deixando que ele envolvesse sua cintura com o braço.

Detestava como ele a apertava, possessivo, puxando-a para mais perto, como se fosse um grande prêmio e precisasse protegê-la de todos. Como se ele não saísse toda sexta-feira para foder alguma colega do trabalho e ela não fingisse não saber.

Passou os olhos pela sala. O lugar era imenso, como toda a casa. A família dele praticamente inteira cabia ali e não era pouca gente. O tio agiota. O irmão que batia na esposa e que Ana havia denunciado em segredo para a polícia, mas de nada resolveu. O pai gay que parecia querer se matar toda vez que precisava fingir estar apaixonado pela vaca da esposa. O primo que assassinou alguém em um acidente de trânsito, mas pagou seus advogados (e provavelmente quem se colocou no caminho) para sair impune. A sobrinha que cheirava mais do que aspirador de pó. O sobrinho de doze anos que, com certeza, já estava morto por dentro, mas quem ali não estava?

Aquela família era um prato cheio. Ana roubou um gole da cerveja do marido, sentindo um pouco de repulsa ao tocar a saliva dele ainda na lata. Por um longo tempo ela ficou lá, observando a todos com seus olhos furtivos, pensando em que buraco havia se metido. Mas precisou parar quando anunciaram a ceia e todos se dirigiram para a mesa de jantar.

A comida tinha um cheiro delicioso, mas o estômago dela se revirou. Seu esposo a puxou para que se senta-se ao seu lado, como se ela ao menos cogitasse fazer diferente. Conhecia todos tão bem que a única coisa que queria era não se sentar de maneira alguma ali. Mas precisava manter as boas aparências, como todos ali tentavam.

"Mas como falham" Ana deixou escapar um risinho enquanto levava a taça de água até os lábios. Achava engraçado como ninguém a via de verdade enquanto ela fazia aquilo tão bem.

Podia escutá-los falando: Ana é boazinha demais. Ana não tem voz. Ana sempre quer apaziguar as coisas. Ana é bestinha demais. Ana nunca faria essas coisas. Todo mundo gosta de Ana. Ana gosta de todo mundo.

Mas Ana detestava todo mundo ali, toda aquela mentira escondida por roupas caras e penteados estáticos. Gostava porém daquela posição, de ser vista daquela forma, o que facilitava ter todos ali na palma de sua mão.

Observou um a um, pensando em todos os podres que guardava com carinho em seu coração. Pensando no quanto era fácil colocar todo aquele império de joelhos, arrancar máscara por máscara e pisar naqueles sorrisinhos.

Ana era boazinha demais... Só até eles perceberem que, entre todos, ela era a pior dali. 

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⏰ Última atualização: Jan 03, 2022 ⏰

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