Era estranho. Ao mesmo tempo em que a energia matutina inflava os pulmões de Cazzia, algo as sugava na mesma proporção. "Energia para fazer tudo, mas vontade de fazer nada." Tal pensamento tomou sua mente, pouco depois de acordar. Estava enrolada em suas cobertas. Apesar do verão, as grossas paredes de pedra do castelo criavam um ótimo isolamento térmico.
Era necessário levantar e começar o dia. Haveria uma importante reunião e, o rei, que também é seu pai, havia dito que sua presença era de grande importância. Caz não possuía a menor ideia do que se tratava, mas gostaria de estar muito bem arrumada. Foi até sua penteadeira, onde ficava uma bacia feita de rubi, contendo água. Algumas toalhas estavam postas ao lado. A jovem de vinte anos usava o conjunto para lavar o rosto pela manhã. Mais tarde, usaria o espaço para se maquiar, frente ao seu grande espelho de cristal.
Após amenizar a expressão de ter recém despertado, ainda em suas vestes de dormir, foi até a janela de seu quarto. Pela manhã, gostava de observar brevemente o céu laranja e o que mais estivesse ao alcance de sua visão. Não era possível enxergar praticamente nada que estivesse além das muralhas do castelo. "Como será que é fora dessa prisão de pedra?"
Estar confinada nas mediações da fortaleza desde seu nascimento a aborrecia. Sabia que existia um mundo lá fora a ser explorado, mas seu interesse em desbravar o desconhecido era inversamente proporcional ao seu preparo para tal façanha. Caz queria conhecer as pessoas simples, os camponeses, mercadores, viajantes. Gostaria de visitar as planícies e vales do reino. Deitar-se em um gramado e observar o céu noturno onde as três luas roubam a atenção.
Para ela, o mundo era um lugar calmo, onde as trevas não dominavam, a guerra havia se esvaído e a corrupção não havia tomado conta do coração das pessoas. Praticamente um conto de fadas. Em outras palavras, seria um mundo completamente avesso ao que seu pai ladrava viverem.
Deixou o parapeito da janela e foi até seu armário. Precisava escolher a roupa com que iria vestir-se. Na intenção de agradar o pai com sua cor favorita, pegou seus três vestidos vermelhos para escolher qual usaria. Mas, após olhar por alguns segundos, decidiu diversificar. Optou por colocar a roupa que ganhara de sua irmã. Quase que uma vestimenta steampunk, mas trocou o colete original por um vermelho. Em seus pés, colocou suas botas de couro marrom. Estava elegante, bem fora dos seus padrões de vestimenta, mas sentia-se confortável com isso. "Queria minha irmã aqui para que me visse vestida assim."
Diferente das demais ocasiões, decidiu usar uma maquiagem leve. Somente algo para realçar seus olhos e boca. Usaria um rabo de cavalo, em vez de manter seus longos cabelos negros soltos. Caz gostaria que algo em si chamasse a atenção que não seus olhos. Um misto de verde, azul e vermelho facilmente a denunciavam. Por mais maltrapilha que pudesse estar fora das muralhas, qualquer um a reconheceria por esse detalhe, mesmo que nunca tenham a visto pessoalmente.
Talvez isso incomodasse o rei, de alguma forma. Alguns anos após nascer, alguém vazou a informação sobre as filhas do senhor, que até então nunca haviam sido vistas por ninguém que estivesse sequer fora do castelo. No caso de Caz, ignoraram completamente a parte sobre seu sedoso cabelo negro e sua pele morena. Todos queriam ver os olhos da garota. O rei, por sua vez, detestou que comentário espalhou-se para a multidão. Somente por isso, o responsável foi punido com incineração.
Logo seria hora da reunião. Antes, precisava se alimentar. Deixou seu quarto e caminhou por alguns corredores do castelo, desejando um bom dia aos servos e soldados por quem passava. Pouco depois de descer a escadaria, estava na cozinha. Alguns empregados já faziam preparações para o banquete que haveria no almoço. A jovem, sem muita fome, deliciou-se com uma maçã vermelhinha, vinda diretamente do Sul do continente.
Então, rumou para O Salão. Ali era o local onde ocorriam eventos importantes, incluindo reuniões. Caz foi saudada por alguns guardas ao passar pela porta. Generais, magos do alto escalão, oclásios e líderes de pequenos povoados estavam todos ali reunidos. Na ponta do salão, estava seu pai o rei, em seu trono cerimônias. À sua direita, dois assentos menos luxuosos para suas filhas, Cazzia e Liz. À esquerda, um assento muito mais simples destinado a sua esposa.
Na ocasião, somente Caz estaria presente. Sua mãe havia desaparecido pouco tempo depois do parto, sem ninguém saber do seu paradeiro. Já Liz, apesar de ninguém saber o paradeiro, possuía toda a atenção da reunião, já que havia se rebelado contra a tirania do pai. Um ato de sensatez, pode-se dizer. As atitudes do rei não condiziam com o seu cargo. Era um tirano nato, louco e arrogante. Mas nem um pouco idiota, pelo contrário. Essas qualidades o tornavam imprevisível e extremamente perigoso para qualquer um que estivesse ao seu lado. Tanto é que uma de suas filhas se viu obrigada a fugir.
O tirano ordenava saber cada detalhe da operação em busca da sua progênita. Os que ali estavam, apesar de também corrompidos e impuros, sentiam certo pavor ao ouvir o homem falar. Não era um desespero por achar a filha. Era uma obsessão, como se ela fosse somente um pivô para alguma outra coisa.
Os generais informaram que todos os soldados subordinados tinham ordem para resgatar a "princesa". O que eles queriam dizer, era que possuíam ordem para rapta-la, onde quer q estivesse. E se alguém estivesse oferecendo abrigo, seria punido. Os magos tentavam traçar o caminho energético da garota para encontrar onde ela estaria, mas disseram que era bem provável que ela desconfiou que fizessem isso. Tanto Liz quanto Caz tiveram iniciação nas artes ocultas, por ordem de seu pai. Ela poderia ter utilizado algum encantamento para encobrir seu rastro.
Os mercadores eram uma peça de maior importância. Possuíam um contato muito maior com a população. E a melhor parte: sem intimidar ninguém. Ora, é muito mais fácil soltar um boato para um simpático vendedor de especiarias, do que para um soldado feio revestido de lata e uma espada desembaiada.
Caz ouvia tudo em silêncio. Apesar de querer saber onde sua irmã estava e sua integridade, não gostaria que aquele pessoal a encontrasse, nem seu pai. "Eles realmente acham que a Liz fez um encantamento. Ela só sabe lutar com espadas, quem entende de magia sou eu. Só espero que não descubram que eu a ajudei a fugir..."
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Kamélia
FantasyE com um estalar de dedos, o carmesim se tornou fértil. A vida se alastrou pela superfície de uma região que outrora fora palco de um massacre. A população especula se as terras vermelhas são fruto do sangue derramado. Mas não há como saber, o tempo...