Prólogo

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Há muito desejei escrever um diário, relatar meus dias em papel, com tinta e palavras, assim como fazem os estudiosos, mas naquela época não pude fazê-lo, pois me faltava papel, tinta e o direito de utilizar das palavras.

Agora, com todos os materiais em mãos, gostaria não de relatar o cotidiano de uma criança sonhadora, mas registrar o que me aconteceu e deixar marcado, mesmo que precise gravar nas pedras, minha história antes que pereça neste buraco de demônios e maldições, como uma mensagem póstuma a ela, que logo voltará, e àquelas que ainda virão.

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Tudo teve início quando eu, meu pai e meus dois irmãos viajamos para um vilarejo a quinze milhas de nossa casa, para vender milho e outras verduras. Fomos até uma cidadezinha no sopé de uma montanha, era movimentada e famosa pelas feiras. Bem no centro das tendas e dos comerciantes havia um púlpito e sobre ele gritava um homem que anunciava as notícias locais, desde ofertas de batatas a crianças desaparecidas com a imagem nas garrafas de leite.

Dentre todas as notícias uma chamou especialmente a atenção de meu pai; a senhora de um castelo buscava por moças jovens para servi-la e oferecia em troca três moedas de ouro para cada família que entregasse suas filhas.

Era um bom negócio, nem eu, nem minha família poderia negar.

Vivíamos em sete e com a nossa renda conseguíamos sobreviver no limiar da fome. Era difícil, ainda mais com duas crianças pequenas e com mais uma a caminho, então ao ver o anúncio, nós quatro já sabíamos o que ia acontecer. Meus irmãos e meu pai olharam-me com um pequeno fio de pesar antes de me levarem até o homem.

Muitos pais ficariam consternados em entregar suas filhas a desconhecidos, mas eu era inútil, estava quase velha demais para conseguir um bom marido, não tinha grande habilidade em vender ou plantar, a única coisa que poderia fazer para aliviar o fardo de meus pais era cuidar da casa ou acompanhá-los para contar o dinheiro que recebiam, pois não tinham qualquer conhecimento monetário.

Não posso dizer que fiquei feliz em partir, amava meus irmãos, amava minha vida simples e pacata ao lado daqueles que são tão caros para mim, mas entendi na hora que aquela seria a melhor chance que teria para poder contribuir todo o esforço que tiveram ao sustentar meu peso.

Então parti.

Fui deixada aos cuidados de um grupo de homens e uma mulher que organizavam as garotas que eram largadas ali em troca de ouro. Assim que meu pai recebeu as moedas, beijou-me a testa e voltou a vender seu milho amarelo, e eu fui levada a uma casa de pedras onde despiram-me e vestiram-me novamente com uma camisola branca e fria, que nada protegia meu corpo do vento gélido que soprava em meio ao outono.

Era desconfortável e congelante, talvez mais incômodo que frio, pois haviam muitas pessoas no mesmo cômodo, todas vestidas com o fino tecido, tão acanhadas que pareciam frágeis pássaros ao lado de gatos. Mas não posso culpá-las por seus rosto contorcidos em tristeza e decepção, todas ali foram largadas por suas famílias, apesar de algumas serem mais velhas, outras eram tão novas quanto minha última irmã.

Depois de certo tempo esperando, uma mulher entrou e nos disse para posicionarmo-nos em fila para nos inspecionar. Ela perguntou a cada uma se tinha algum problema de nascença ou se possuía algum membro aleijado. Após algumas serem devolvidas como carga defeituosa e outras permanecerem, recebemos um vestido um pouco mais quente e embarcamos em uma carroça.

Era uma boa carroça, de bom e resistente material, mas parecia mais uma gaiola de pássaro que uma carroça. As grades de metal grosso e o chão de madeira intimidadora, parecia feita para carregar criminosos ou animais de grande porte, o cocheiro tinha uma cabine fechada enquanto todas foram jogadas para dentro com apenas camisolas, um fino vestido marrom e alguns cobertores para nos aquecermos.

Na época eu não via mal naquela situação, ainda era uma garota espirituosa que via o lado bom de todas as coisas. Neste dia eu alegrei-me por ter recebido cobertores e imaginei que minha senhora seria uma mulher boa e gentil, que oferta agasalhos a seus servos e que providência o conforto para sua locomoção. Como eu era tola, cheguei ao cúmulo da estupidez ao ver, como uma simples consequência, o fato de que quase metade das moças que entraram ali sadias acabaram morrendo pelo frio durante a viagem.

Chorei por suas mortes e rezei para que elas subissem aos céus, senti-me culpada por não abraçá-las e aquecê-las, assim como fiz com outras. Fui tola por muito tempo, talvez por tempo demais, até ser tarde para perceber o buraco onde eu havia caído.


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Sejam bem vindes à Doce Nuvem, um conto de romance e terror.


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