Periit spes mea

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Fala, galerinha das cabrita preta! Olha só, o livro completo já está disponível na Amazon:

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Por aqui, pretendo continuar publicando, à medida que os últimos capítulos forem batendo suas metas de curtidas!  ;-)


— Saaalve, infernautas! Eu sou o seu Whingedson e tá começando mais uma laive aqui no nosso canal Estação Inferno! E olha só, já tamo aqui na periferia de Jerusalém, e daqui a pouquinho nós vamo trazer pra vocês um bate-papo com... ele! — Entra a trilha de suspense, que lembra a de algum desses noticiários sensacionalistas da televisão aberta. — Sim, meus queridos, uma entrevista exclusiva com ninguém menos que o próprio Demônio! É isso mermo, cês tão ligado? O Maligno! O Cramulhão! O Capiroto! O Zarapelho! O Sapucaio! Pega a visão, eu vou enfrentar o Lá de Baixo cara a cara! Minha mãe ia ficar orgulhosa se pudesse me ver agora! Fico até emocionado!... Então já senta o dedo no laique, que tu tá ligado que o laique é a campainha que faz iutuber ficar salivando, comparte aê o linque com os bróder e com as broda, com os mano e com as mana, com as mina, com os mino e com os mine, e se ainda não é adscrito aqui na nossa estação já tenha a finura de se adscrever, não esquece de cliquetar nesse balangandã aqui embaixo, que não serve pra nada mermo, mas aproveita que pelo menos ainda é de graça, vai me seguindo aê em tudo que é rede social, se tu ainda não é meu seguidor, e vai dando dinheiro aê em tudo que é lugar de dar dinheiro, tá tudo lincado aqui no rodapé da telinha, fortalece aê pa nóis que nóis agradece, e enquanto o pessoal vai chegando, a gente vai descendo aqui por essa encosta por onde já desceu Dante Alighieri, lembra dele, galera? Se tu não lembra, dá uma gugada aí, que dá tempo... E olha só, depois de quase uma hora desse quase rapel, parece que já dá pra ver os portais do inferno! Mostra ali, Piolho! — A câmera focou o pé da encosta, onde a custo se podia ver um portão de grades verticais completamente enferrujado. — Daqui a pouquinho a gente vai entrar, hem?! A gente vai acordar aquele que nunca dorme! E, olha, ele já prometeu fazer revelações bombásticas! É já já, depois do nosso "Jabba"! — Piolho, que além de câmera é iluminador, diretor, produtor e faz-tudo do canal, roda o jabá.

— Tens certeza de que é preciso isso tudo? — perguntou o demônio, com uma visível contrariedade estampada nos cornos.

— É uma marca registrada do nosso canal — assegurou o famoso iutuber, e o demônio logo viu que seria inútil tentar dissuadir alguém como ele, com mais de cinquenta milhões de seguidores, orgulhosamente alcançados sem o expediente de banhos com creme de avelã ou o de desempacotamentos de eletroeletrônicos, nem tampouco de colorações capilares exóticas ou outros desafios humilhantes. Sabe-se lá de onde lhe vinha isso, mas o cara tinha um talento natural para seduzir as massas. — Nosso público vai à loucura com o suspense. Olha só, já temos mais de três milhões de pessoas participando da laive! — exclamou, dando uma olhadela no espertofone e aproveitando para passar os olhos pela aba de bate-papo.

— Bem, que se há de fazer? Capitalismo é isso aí... — resignou-se o da capa preta surrada e de bordas esgarçadas.

— Vem cá, me fala uma coisa, o senhor já mandou amarrar o Cérbero, né?

— Claro, meu jovem. Eu não ia querer que ele ficasse se xumbregando nas pernas do cinegrafista... Seria assaz constrangedor.

— Bem mais "constrangedor" seria se ele me triturasse uma das pernas... — riu-se nervosamente o câmera.

O demônio fechou a cara.

— Ele não faria isso, meu caro. Ele não bate muito bem das cabeças, mas vos asseguro que ele não é violento. Pelo menos, não desnecessariamente... — E, voltando-se para o apresentador: — Os mortais têm ideias muito equivocadas sobre as coisas que se passam por aqui. Por isso é que essa entrevista é tão importante para mim, compreendes?

— Pode pá. Dentro de só mais um minuto, então. O senhor está pronto?

— Eu sempre estou pronto, meu jovem — escandiu o demônio, inclinando as sílabas, e abriu um sorriso ferino e soberbo.

O rapaz sentiu um calafrio e notou que os cambitos de repente lhe tremiam que nem vara verde no vendaval, mas o chavelhudo o tranquilizou:

— Aquieta teu coração, nenhum mal vos será feito a nenhum de vós enquanto estiverdes em meus domínios.

— Trinta segundos! — alertou o câmera.

O apresentador respirou fundo, empertigou-se e posicionou o microfone. De rabo de olho, pode notar que o demônio também alteou o queixo e estreitou de leve as pálpebras, o que lhe acrescentou mais um quê de orgulho ou de uma segurança talvez encenada, embora não propriamente teatral. O câmera iniciou a contagem regressiva usando gestos de sinalização tática para contar de dez até um usando a única mão livre. No "zero", moveu a palma da mão no ar em sinal de "vá em frente".

— Faaala, galerinha das cabrita preta! Já tamo de volta, aqui tá um calor infernal, tu não imagina, tio, parece até que queimaram milhões de hectares do Pantanal e da Floresta Amazônica!... E conforme prometido, hoje eu vou entrevistar o próprio Demônio, em pessoa! E olha só quem é que já tá aqui do meu lado...

O cinegrafista abre o plano e o demônio aparece, não em toda a sua glória, o que seria muito clichê, mas ao menos com toda a distinção e altivez dignas da sua autoridade.

— Paz seja convosco. Eu vos saúdo a todos, vós que nos acompanhais. É um grande prazer poder finalmente compartilhar convosco a nossa versão da história, já que, como bem o sabeis, todos os livros sagrados foram escritos por Deus... — e, baixando o tom de voz, adicionou: — aquele azeiteiro duma figa!

— Bom... Hã-hã... — pigarreou a estrela do programa, e sorriu, disfarçando o embaraço. — Tenho certeza de que todo mundo em casa tá ligadaço no nosso canal e não vê a hora de saber toda a verdade! E olha só, já tem um monte de gente perguntando aqui no nosso "Chet Baker" o que que tá escrito ali no portal. É difícil entender essa letra de grafiteiro...

— É italiano. Lasciate ogni speranza. Quer dizer...

"Deixai toda esperança" — os dois falaram ao mesmo tempo, e o repórter animou-se: — Exatamente como descreveu Dante!

— Na verdade, é uma citação de Dante — corrigiu o demônio. — Certamente uma brincadeira de algum espírito zombeteiro, pois é um aviso inútil... Quem vem parar aqui já perdeu toda esperança de encontrar lugar melhor.

— Posso imaginar... Bom, podemos entrar agora?

— Mas é claro! Sede bem-vindos à minha humilde morada — convidou o demônio, alteando a voz e acompanhando a saudação com um gesto largo.

Sem dar as costas para a câmera, e com apenas dois passos ágeis e vigorosos, como um vídeo em retrocesso acelerado, ele já alcançava a tranca do portão, ao pé do qual os intrépidos rapazes só chegaram vários passos depois, já um tanto ofegantes pela rapidez a que se viram forçados, e de cabelos em pé, pois a cena tinha sido de arrepiar, mesmo. Apesar dessa sinistra demonstração de destreza, e da notável vantagem que ela lhe proporcionara, o demônio ainda não havia logrado aluir a aldraba do portal, aparentemente emperrada. Era ele quem se esfalfava agora, fazendo caretas medonhas e blasfemando em línguas estranhas, que soavam como um áudio reproduzido de trás para frente. Finalmente, parecendo perder a paciência, afastou-se coisa de uma braça e desferiu um coice pavoroso contra as folhas do portão, que pronto se arreganharam.

Entrevista com o DemônioOnde histórias criam vida. Descubra agora