Omnes declinaverunt

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Sem mais cerimônias, o trio adentrou o subterrâneo oculto pelas muralhas de rocha ígnea, mas, em vez do vespeiro descrito pelo poeta florentino, o lugar mais parecia estar era entregue às moscas. O terreno, todo acidentado, estava completamente coberto de lixo, que atapetava toda a paisagem. Ao longe, na direção do Mediterrâneo, por detrás de montanhas de latas, garrafas, pneus e carcaças de automóveis, elevavam-se colunas de cinza vulcânica, inflamadas por contínuas descargas elétricas que iluminavam toda a amplidão da furna. O repórter fez uma careta de repulsa ao constatar que todo lixão tem sempre o mesmo fedor azedo. O cheirume lhe fazia recordar da infância na Grota, no Complexo do Alemão, então uma das favelas mais violentas do Rio, se é que de lá pra cá alguma coisa tenha melhorado com a chegada das unidades de polícia pacificadora. Se tem uma coisa que ele aprendeu muito bem é que, onde existe fome, paz é uma coisa que tem que ser imposta à força, com muito helicóptero e metralhadora. E muito tapa na cara também.

Apesar do breve sobrecenho que lhe denunciava o embaraço, o demônio continuou sem perder a compostura:

— Não repareis a bagunça, meus amigos... Isso aqui é um inferno! Mas vamos chegando, que a minha casa é toda vossa...

— O senhor me perdoe a indelicadeza — arriscou o apresentador —, mas bem que eu preferiria não ter que passar a eternidade por aqui...

— Ora, não diga isso, meu jovem! Estou certo de que mudarás de opinião depois dessa visita! — repôs o demônio, com aquele mesmo sorriso ferino e soberbo. E ainda mais ferino, prosseguiu, alevantando a voz: — Melhor seria que seguísseis o conselho que acabastes de ler na portada. Se soubésseis como é comum aos recém-despegados da carne virem dar aqui em busca de abrigo, aproveitaríeis o passeio para vos irdes acostumando a estas paragens... — E, com um pouco mais de soberba, concluiu: — Além do que não imaginais o inferno que é conseguir um visto para ascender ao "paraíso", e ele nem é tudo isso que supondes...

— Com todo o respeito, mas vira essa boca pra lá! Sei que é grande meu galardão no céu!

— Sei... Bem grande e duro! — ciciou o demônio, com uma risadinha de deboche.

O repórter estremunhou alguma interjeição de dúvida e de espanto, que compeliu o demônio a tergiversar:

— Querei me perdoar, amigos... O que eu quis dizer é que... Bem, apenas vos asseguro que é praticamente certo que volteis a estas bandas, pois que quase não temos notícia de algum de vós que tenha se evadido a esse destino.

O rapaz chegou a levar a mão à testa para fazer o sinal da cruz, mas deteve-se em tempo e disfarçou o deslize enxugando o suor da fronte. Porém o demônio, conhecedor como só ele de todas as fraquezas humanas, tranquilizou-o explicando que nenhuma atitude era ali proibida, exceto as que porventura ferissem a liberdade alheia, que aquele era o lar de todas as vacilações e debilidades de caráter, e que a nenhum demônio importariam orações ou atos litúrgicos, os quais, de mais a mais, de pouco ou nada lhe valeriam, até porque a grande maioria dos que lá se encontravam hospedados eram dados a essas superstições e elas nunca lhes haviam servido de coisa alguma, nem enquanto eram carne, que dirá agora e doravante.

A bem da verdade, não se sabe até que ponto tais palavras efetivamente serenaram o rapaz; talvez até o tenham desnorteado mais, mas ele era um profissional e não iria se deixar abalar tão facilmente. Não, senhores! Não depois de tudo o que passara, da infância no morro, das surras constantes do padrasto, de todas as dificuldades que ele teve de superar para ser admitido na faculdade de jornalismo e de todo o preconceito que ele teve de enfrentar para conseguir uns frilas na principal agência de notícias do país, enquanto continuava com seu canal no YouTube. Ele se preparara por meses para aquele encontro, que esperava fosse impulsionar sua carreira como um Falcon 9, e não iria se deixar enredar tão facilmente pelo mestre das perfídias. Tanto assim que enxotou as dúvidas que se lhe alvoroçavam em torno da cabeça como aquela nuvem de moscas, e voltou a si:

Entrevista com o DemônioOnde histórias criam vida. Descubra agora