Eu nasci a 10 mil anos atrás

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Fazia tempo que Kageyama não tocava em um bar como esse, pensando melhor, acha que nunca viu um lugar assim. Pode parecer contraditório, um bar vintage com detalhes modernos, aspectos de formalidade, mas um ar relaxado e acolhedor. A estrutura era quase completamente de madeira com aparência envelhecida, ela se espalhava pelas paredes, teto, vigas e as bases das bancadas, estas que tinham o topo coberto por granizo preto, o mesmo que cobria o chão. O conceito era aberto, enquanto o bar ficava em uma parte coberta, grandes espaços vazados levavam a um jardim grande o suficiente para acomodar 50 pessoas. Os lustres, taças e os cuidados com o local mostravam uma atitude formal, mas a postura dos que trabalhavam, a disposição de mesas e a forma de atendimento davam um espírito relaxado ao local. Talvez tenha ficado muito tempo com a boca aberta, já que uma pequena gota de saliva quase vazava de seus lábios, era raro para Kageyama ver algo tão singular, bom, nos tempos modernos o singular é mais comum, entretanto esse bar era diferente, o nível Tobio de diferente. Talvez esse lugar tivesse segredos que ele ainda não tenha descoberto.

O jardim ainda estava coberto com uma leve camada de neve, feita pelos dias frios de dezembro. A um distanciamento razoável das mesas um pequeno palco podia ser avistado, onde era possível distinguir a silhueta de Kageyama, que começava a montar seus equipamentos. Havia sido contratado para tocar e cantar, tanto covers quanto músicas autorais. Séculos de treinamento lhe renderam ótimas habilidades e uma ótima reputação pelo mundo, mesmo com diversas identidades continua sendo seu corpo que performa a música, ainda são suas capacidades que levam ao seu reconhecimento. 

Há um senso comum de que ser um vampiro é uma punição divina, uma forma de pagar pelos seus pecados, ou melhor, a verdadeira imagem do que eles te transformam. Punição, por muito tempo Tobio pensou da mesma forma, ver as pessoas próximas morrendo, as vezes matando outras pela sobrevivência, tanto pela sede de sangue quanto pela defesa pessoal, foram muitas perseguições, muitos anos recluso com medo de sair às ruas, principalmente com a proximidade do Halloween, a época mais perigosa. Tudo isso, sem contar a solidão e o tédio infinito que ser o único vampiro do mundo venha a causar. Mas Kageyama aprendeu a mudar sua forma de pensar, decidiu utilizar o que o universo lhe ofereceu e explorar o mundo, experimentar novas coisas, descobrir e aprender novas habilidades, e aprimorá-las ao máximo, entender seus instintos para conseguir controlá-los. 

Foram muitos anos de aprendizagem e não é surpresa que existem diversas histórias sobre si ao redor do mundo, e com tantas contradições. Não pode dizer que todas são verdades, mas também não pode dizer que todas são mentiras, uma coisa é certa, o cérebro humano tem tendências a dramatizar ocorrências. A chegada dos primeiros clientes interrompeu seus devaneios e lhe deu a deixa que precisava para começar a tocar, a transformar sentimentos e pensamentos nas mais perfeitas notas melódicas. O proprietário tinha deixado livre suas escolhas para músicas, então fazia uma escolha meticulosa de acordo com seus sentimentos, vivendo cada linha e alimentando suas lembranças, que o inundavam por inteiro. Das poucas que tinham quando o show se iniciou, começaram a formar uma pequena multidão, a maioria envolta do palco, acompanhando atentamente a performance. 

Alguns dançavam, outros conversavam em cochichos, apreciando o som, já outros apenas encaravam o cantor. Essa última era especificamente um casal, que de mãos dadas possuíam brilhos nos olhos ao apreciar o ser que tocava as músicas, suas expressões, que lembravam angústia, nostalgia, as vezes alegria, uma emoção tão grande que envolvia os dois em uma cortina translúcida, os separando do mundo real. Oikawa e Iwaizumi nunca haviam sentido isso pela mesma pessoa, possuíam um relacionamento semiaberto e já presenciaram os gostos de cada um e tinha de certeza que eram opostos. Mas a conexão que sentiram no momento foi única, e com certeza fariam de tudo para conquistar os olhos azuis que agora os encaravam. 

Tais olhos que abriram devagar, se preparando para uma das suas músicas preferidas, talvez pela ironia contida nela. Dois oceanos de cor profunda, captaram outros quatro que o encaravam com a maior luxúria que já tinha visto, claro, presente em além de si mesmo. Um arrepio percorreu sua espinha, as coisas estavam ficando interessantes, talvez finalmente o universo esteja lhe dando um presente de Natal. Tal pensamento desencadeou um leve rubor que tomou conta de suas bochechas e orelhas, um suspiro envolto de um sorriso escapou dos seus lábios e com a animação servindo como combustível para seu coração, que batia cada vez mais rápido, começou a cantar, essa música que parecia mais um discurso com tempo marcado, uma história com ritmo, um sofrimento com arranjos alegres.

"Um dia, numa rua da cidade, eu vi um velhinho sentado na calçada

Com uma cuia de esmola e uma viola na mão

O povo parou pra ouvir, ele agradeceu as moedas

E cantou essa música, que contava uma história 

Que era mais ou menos assim:

Eu nasci há dez mil anos atrás e não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais…" 

Os olhos de Tobio, que não desgrudavam do casal, notaram algo que Kageyama nunca viu acontecer, pelo menos não com uma plateia que nunca tinha visto antes, os lábios dos dois se moviam junto dos dele, eles cantavam a música como se a tivessem internalizado. Eram muitas coisas diferentes em um mesmo dia, muita coisa pra processar. Talvez estivesse finalmente louco? Como duas pessoas que nunca viu antes sabem sua música? O sorriso em seus lábios foi se desfazendo, não entendia o que estava acontecendo. Existiam mais vampiros? Ou talvez outros seres? Kageyama averiguou suas orelhas, não pareciam ser elfos, pelo menos não os dos livros e filmes. Quem eram eles? Como sabiam a letra antes mesmo das palavras saírem de sua boca? E por quê, por que caralhos ele se sente tão atraído por esses dois homens que no momento o aterrorizam? Por que seu coração dói como se fosse sangrar e seus olhos enchem de lágrimas com um sentimento de nostalgia? 

Parando pra pensar, existiram dois parceiros que vieram a vida do cantor em momentos distintos, os dois que o olhavam da mesma forma e que cantavam junto a ele. Mas os dois morreram, mortes dolorosas que o traumatizaram por toda a eternidade. E além da morte eles não tinham essa aparência, era estúpido pensar sobre isso. Sua voz já estava falhando, a plateia ainda não tinha notado, seria uma vergonha um choro em meio a uma música supostamente animada. Os olhos azuis quebraram contato com os outros, seu dono decidiu focar na finalização perfeita da performance e em achar uma solução para a questão que agora tomava conta de seus pensamentos. "Como faria para evitá-los?" 

Depois de 10 mil anosOnde histórias criam vida. Descubra agora