único

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A empregada fechou a porta depois de sair da sala privada do homem de bruços na mesa e com o rosto coberto por suas madeixas loiras, mas ainda assim se podia ver a ponta de sua sobrancelha espiral que um certo alguém gostava de tirar sarro na sua infância. E esse "alguém" era exatamente a pessoa que levara a serviçal até ali para anunciar sua chegada. Roronoa Zoro lhe aguardava no andar de baixo com seus filhos.

Sanji ergueu a cabeça da superfície da mesa, que cada vez mais parecia ser o lugar perfeito para viver até morrer. Ficara tão à vontade, que a mesa estava coberta de baba, sua própria baba. Sentiu nojo de sua própria baba.

Coçou os olhos azuis, numa tentativa de recuperar o equilíbrio que o whisky tomara de bom grado em pleno dia — um desgraçado —, e jogou o cabelo para trás enquanto pensava estar pelo menos um pouco apresentável por ser o anfitrião da casa.

Levantou-se da poltrona para ajeitar a roupa, mas viu que ainda estava sujo de sangue. Bufou e resolveu jogar tudo pro alto, Zoro sabia que ele era um péssimo anfitrião e provavelmente esperava por um Sanji acabado ou até mesmo despido. Resolveu fumar um cigarro antes de descer.

Zoro era um velho amigo, se conheceram ainda crianças e cresceram juntos, havia acabado de se divorciar e lidava muito bem com isso. Pelo menos era o que aparentava, pois Sanji suspeitava que ele fingia estar bem para não preocupá-lo desde que ficara doente.

Sanji largou a sala mal iluminada devido as cortinas fechadas e que exalava cheiro de livros — senão o próprio cigarro que fumara. Era o local que mais passava tempo e também o mais melancólico da casa. No passado, passava mais tempo na cozinha e as janelas eram abertas pelo menos. Desceu as escadas e encontrou Zoro pedindo aos seus três filhos para se comportarem devidamente na casa dos outros.

— Marimo.

Zoro tirou sua atenção das crianças para encará-lo. — Cozinheiro.

Desceu os últimos degraus e parou em frente a eles com um sorriso, embora tivesse reparado a cara de poucos amigos que o convidado fazia, agora tinha certeza que sua aparência não era das melhores.

— Tio, Sanji! — Exclamaram as crianças, rodeando-o muito felizes. Sanji se agachou na altura delas com um sorriso gentil que só dava quando as via, e disse que havia feito uma sobremesa. As crianças correram para a cozinha, fazendo mais barulho que o habitual, e Zoro se amaldiçoava por ser um péssimo pai.

— Me perdoe por isso.

— Tudo bem, marimo. Eu e os empregados gostamos das agitações que eles trazem.

Continuava constrangido, mas Zoro sabia que era verdade. Ele via como Sanji ficava feliz com suas visitas. Seu amigo era um homem solitário que morava numa casa coberta de ecos, pois a única presença ficava presa no escritório quase sem luz. A pele que já era pálida, ficava cada vez mais transparente, e surgiu uma mancha roxa em volta dos olhos, sem falar dos dentes amarelos e a barba sem fazer. Era vaidoso no passado, agora não se importava mais em como era visto.

— Gostaria de ter tido um filho, quem sabe ele se tornaria um grande amigo dos seus, assim como aconteceu conosco?

Cortou os pensamentos de Zoro, que sentiu melancolia em suas palavras.

— É... — Não era de hoje que pegava Sanji dizendo que queria um filho, pior que nem podia mentir falando que não valia a pena por ser estressante, quando o sorriso das crianças compensava todo o esforço que fazia. Sempre tinha esse sentimento de realização no momento em que ficava ao lado delas na cama, esperando cada uma dormir.

— É bom, né? Nem ao menos me consola dizendo que é muito trabalhoso. — Sanji riu, lembrando que seu amigo sempre fora tão transparente.

Zoro soltou um suspiro. — Você pode ser pai.

— Vou morrer brevemente.

— Sério? Pra mim tá demorando, mesmo destruindo sua saúde nas bebidas. E qual é desse sangue na roupa? Quer assustar as crianças?

— Matei um pato para o jantar de hoje e me desculpe, a última coisa que quero é assustá-las.

— Então, tome um banho pelo menos!! Você cheira a álcool!

— Ora, você dizendo isso? Estou mesmo na pior...

— Esquece, vou atrás delas antes que quebrem algo. — Seguiu para a cozinha e Sanji o observava, pensando que o marimo virara mesmo um bom pai.

Pela tarde fizeram um piquenique debaixo de uma árvore no jardim imenso e florido da mansão. As crianças corriam felizes a ponto de deixar as bochechas rubras, fazendo Sanji pensar que Zoro tinha lindos filhos e tudo graças a mãe, é claro. Zoro não teve um momento de paz, porque se desesperava quando as crianças pareciam a todo momento fazerem coisas erradas, como arrancar flores raríssimas e acabar as matando ou montarem no cachorro que havia na casa. Mas Sanji sorria e no final de tudo, Zoro se sentia bem. A prioridade era fazer seu amigo de infância sorrir.

Anoiteceu, haviam jantado o pato de Sanji e como sempre, estava tudo impecável. Zoro carregou um filho que já dormia — esse fazia Sanji achar que era o mais parecido com o marimo, tinha os mesmos péssimos hábitos — até o carro, os outros dois também entraram. Sanji observava do portão e depois do marimo colocá-los nas cadeiras devidamente, voltou para a mansão. Ele parou o passo exatamente em frente do cozinheiro e coçou a nuca, sem jeito. Sanji podia jurar que o viu corar, mas não entendia o motivo.

— Bem... eu acho que você esqueceu... — Disse desviando o olhar, mas logo voltou a encarar os olhos azuis do amigo. — Mas... feliz aniversário, cozinheiro!

Sanji piscou os olhos e automaticamente tentou se lembrar que dia do mês era aquela noite abafada. — Meu aniversário?

— Sim, como eu disse... você se esqueceu.

— Me esqueci mesmo!

Começou a rir e Zoro o achou belo. Ele tinha certeza que o cozinheiro possuía os melhores sorrisos e algo inexplicável tomava o seu coração toda vez que os via.

— Viva, Sanji.

Sanji parou de rir depois de ouvir o tom firme na voz de seu amigo, enxugou a última lágrima que desceu, e suavizou seu semblante para o estado que Zoro gostava de se referir como "angelical".

— Sim. 

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