Parte Um

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O pássaro cinzento atravessava o céu alaranjado com pressa como se soubesse a urgência de sua demanda. O entardecer avançava ferozmente prenunciando o que a noite reservava. Como seu treinador havia ensinado, o animal pousou sob a mureta de pedra da torre e piou para anunciar sua chegada, no entanto, já estava sendo esperado.

O rapaz de cota de malha desamarrou o pergaminho da pata do pombo mensageiro e apressou-se para descer da torre. Adentrou a sala de Crest e entregou-lhe o rolo de papel. O capitão, um homem marcado de cicatrizes e veterano de dúzias de batalhas, franziu o cenho e passou os dedos pelos cabelos curtos e grisalhos.

- Reúna os homens no salão principal. – Disse a Ip, o garoto responsável por cuidar dos pombos mensageiros. – Precisamos nos preparar.

E assim o soldado fez. Desceu as escadarias da fortaleza tentando não tropeçar sob os próprios pés. Seguindo a ordem de seu comandante, chamou por todos os guerreiros da guarnição, mesmo os que faziam a vigília dos portões principais. Todos precisavam estar presentes para o que Crest haveria de dizer. No canto da sala, June acompanhou a breve interação de maneira tensa e concentrada.

- Vamos, garota. Precisamos prepará-los para o que está por vir.

A fortaleza encontrava-se entre duas passagens inóspitas na montanha. No passado havia sido um importante pináculo de defesa, separando a capital Eferet das invasões dos reinos vizinhos. Contudo, devido a paz que reinava há séculos, seu uso tornou-se dispensável. Agora, tanto tempo depois, os soldados da Aliança Primeva precisavam ocupar o local para impedir o avanço do exército profundo.

Muitos daqueles homens sequer haviam visto o que estavam prestes a enfrentar. Outros não acreditavam em sua existência, crendo que se tratava apenas de um exagero das mentes mais fracas. Os mais jovens ainda não haviam derramado sangue em batalha, fosse o seu próprio ou o de um combatente rival. Não obstante, a verdade se apresentaria em breve e eles poderiam contemplar a assombrosa verdade daqueles rumores.

Crest apresentou-se diante da sacada do salão e vislumbrou o contingente de homens que havia sido confiado a ele. Havia guerreiros de valor entre eles, os quais talvez fossem capazes de sobreviver a uma batalha justa. Uma batalha contra outros homens. Mas não era isso que os aguardava. O silêncio mergulhou no salão e ele ergueu o papel em direção aos soldados. June permanecia ao seu lado, calada como uma sombra.

- Acabamos de receber a notícia de que os exércitos aliados estão há dois dias de distância. São cerca de mil homens, número suficiente para repelir as forças inimigas. – O tom de Crest denunciava que, apesar do que fora dito, a situação deles estava longe de ser ideal. – Contudo, as forças inimigas avançaram de maneira muito mais rápida. Os desgraçados não são afetados pela fadiga e a única coisa que os move é a fome. Estarão aqui ao anoitecer.

Os murmúrios tomaram o salão. Crest sabia que aquilo aconteceria e temia que o pânico se espalhasse como veneno entre seus homens.

- Não há como derrotarmos um inimigo tão numeroso. Nosso único objetivo será atrasá-los e impedir que cheguem a Eferet até que os aliados nos alcancem.

- Sabemos bem o que nos aguarda se os enfrentarmos. – Disse Vice, um dos guerreiros mais experientes. – Está nos pedindo para morrer.

- Nunca os enganei quanto a isso. Essa batalha não é sobre a vida de vocês. É sobre suas esposas, filhos, mães e pais. – Crest apontou em direção ao portão. – Aquelas coisas arrancarão a pele de seus ossos e se banquetearão com sua carne.

- Elas não oferecerão misericórdia. Cada mulher e criança serão massacradas e, logo, se juntarão as suas fileiras. – Continuou Avo, um soldado conhecido por já ter enfrentado tais criaturas antes.

- Se deseja partir ainda há tempo, Vice. Cacete, leve meu cavalo se quiser. Mas por quanto tempo conseguirão escapar até que os profundos os alcancem? Logo toda essa terra será tomada por eles, se assim permitirmos.

- Eu tenho um irmão. – Argumentou Vice constrangido. – E é por ele que lutarei.

- Muito bem. Preparem-se, homens, para receberem os demônios em nossa fortaleza. Tentar mantê-los do lado de fora não adiantará, portanto, abriremos nossos portões e os enfrentaremos em nossos termos. Este será o túmulo dos desgraçados. – Crest desembainhou sua espada e a ergueu, sendo acompanhado pelos cinquenta soldados que liderava. – Preparem-se, homens, para a morte!

Os gritos de guerra preencheram o recinto e fizeram toda a fortaleza estremecer. June fez o mesmo, inspirada pelas palavras do comandante. Uma vez que a algazarra terminou, cada soldado seguiu seu caminho para realizar os próprios preparativos segundo as orientações de Crest. O comandante virou-se para ela e a confrontou.

- Ouça bem, garota. Pouco me importa se seus talentos são uma dádiva da Grande Mãe ou se derivam da Ruína dos Devoradores. Vamos precisar que use cada gota de poder para enterrar os desgraçados. Posso contar com você?

Admirada, June sentiu o calor místico pulsar dentro dela como uma fera implorando para sair.

- Estarei pronta, capitão. 

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