Cristalizado sob a pele, brilhava o rubro sangue que havia consumido. Cada osso, músculo e fibra de seu corpo foram imbuídos da pulsão mística da vida. June converteu-se em uma algo saído dos mais bárbaros pesadelos.
Em sua mão, o sangue solidificou-se no formato de uma espada longa e grotesca. Os pensamentos de June ficaram anuviados e instintivos; a única coisa que conservou foi seu objetivo. Era para isso que seus companheiros haviam caído, para dar-lhe a chance de impedir os profundos. E ela morreria antes de deixá-los chegar a Eferest.
Avançou em uma velocidade absurda empunhando sua espada sangrenta, cujo primeiro corte rasgou ao meio os três profundos mais próximos. Ela rugiu em um jubilo insano e partiu para continuar seu abate. June brandiu a lâmina e perfurou outros dois profundos, dos quais a única reação fora um gemido torpe, e atirou-os com força em direção aos seus iguais.
As criaturas acumularam-se ao redor dela, tentando derrubá-la, mas ela continuava a girar sua arma contra as criaturas, esquartejando e degolando incontáveis delas em poucos instantes. A cada arranhão e mordida que sofria, seu corpo se alimentava da reserva de sangue e, logo, estava recuperada.
Os corpos dos profundos empilhavam-se ao seu redor, porém as criaturas não paravam de chegar. Crest havia mencionado que o contingente inimigo era formado por pelo menos quinhentos invasores, e menos de uma centena fora impedida antes que June se juntasse à batalha. Embora seu vigor sobrenatural representasse um trunfo, o sangue que lhe potencializava não duraria para sempre.
Sua nova forma tampouco afastava a dor de ser rasgada e perfurada uma centena de vezes. Como um animal acuado, percebeu o perigo crescendo à medida que era ferida. Isso a tornou mais violenta, fazendo com que June usasse sua arma para partir mais criaturas ao meio com brutalidade. Os profundos não tinham sangue com que pudessem se alimentar e repor as energias, contudo, ao contrário dela, eles jamais se cansariam.
June abriu caminho por entre as criaturas e se afastou, ceifando cada uma das que ficaram diante dela. Saltou sob o que restava dos soldados: corpos destroçados, cuja vida fora terminada de maneira tão violenta, porém carregada de objetivo. Entre eles estava Crest, de olhos abertos que fitavam o vazio.
Aproximou-se dele e se viu tomada pelo sentimento de desespero. Haviam profundos demais para ela enfrentar. Eles a abateriam e conseguiriam alcançar Eferest. Ao amanhecer não sobraria ninguém na cidade. Milhares de vidas seriam perdidas sob as garras obscuras das monstruosidades que os Devoradores haviam concebido.
Ao tocar o cadáver que pertencera ao comandante, June se deu conta de duas coisas. A primeira era de que não tinha sangue o suficiente para conseguir dar cabo dos duzentos profundos que haviam sobrado. A outra, que constatou ao sentir o calor latente na pele de Crest, era que ela não estava tão sozinha quanto considerava.
June esticou as mãos e ampliou seu controle; sentiu a Nascente fluir através de si. Dessa vez os mortos estremeceram em resposta, afinal, havia sangue residual em seus órgãos, nas veias e nos músculos. Um a um, os soldados caídos começaram a se levantar. Alcançaram as armas mais próximas e partiram para enfrentar os profundos. June fitou Crest, cujo peito aberto exibia os ossos e a carne enegrecida, e deu a ordem para que avançasse. Como um servo, ele obedeceu: pegou um machado e transpassou-o contra a cabeça de um dos profundos. Seus homens o seguiram, ausentes de dor, fatiga ou vida e em direção ao confronto.
Um a um, os profundos foram caindo sob o ataque dos mortos. Irreconhecíveis sob seu pútrido e inumano verniz, levaram com desmedida crueldade vingança àqueles que os assassinaram. Mesmo quando o aço das espadas cedia ou as armas lhes eram arrancadas, os soldados continuavam atacando com os dentes e as mãos, estraçalhando as criaturas de maneira monstruosa.
Por mais temíveis que fossem os profundos, sua selvageria não foi suficiente para enfrentar os corpos reanimados dos soldados. As criaturas foram erradicadas tão brevemente quanto os guerreiros da Aliança foram mortos.
Com o corpo tomado pela exaustão, June baixou os braços e viu-se sozinha em meio aos mortos-vivos. Sua concentração se rompeu e ela de pronto compreendeu o que havia feito. Necromancia. A arte proibida dos mortos. Havia usado aqueles homens sem seu consentimento, violando-os de maneira profana. Os olhos da jovem encheram-se de lágrimas vermelhas e ela gritou, com ninguém além dos caídos para ouvi-la. A loucura espreitava de maneira atroz. Ela não queria que vissem aquilo, que soubessem o que ela havia feito. Só havia uma maneira de proceder.
June ergueu os braços e chamou suas forças uma última vez. O sangue nos corpos mortos veio ao seu encontro e esses secaram e caíram como cascas vazias. Ela infiltrou o sangue nas paredes e no teto, nos pilares e nas colunas. Então, puxou-os. A fortaleza tremeu e balançou, e suas pedras cederam simultaneamente. À distância foi possível ouvir o terrível estrondo da queda.
O sol ergueu-se e voltou a se escondeu no horizonte duas vezes antes que os exércitos da Aliança Primeva chegassem ao que havia restado da fortaleza. Encontraram uma imensa pilha de pedras ao final da ponte, sem sinal dos homens que outrora guardavam o local.
O general que liderava o regimento e seus homens de confiança ouviram um som lamurioso e ele ordenou aos demais soldados que buscassem sua origem. Após certo tempo trouxeram diante deles um garoto, trajado de cota de malha e com uma armadura empoeirada. O rapaz era um dos soldados que guardavam a fortaleza. O único sobrevivente da batalha contra os profundos.
Quando perguntaram a ele o que havia se passado, como a fortaleza fora posta abaixo, ele ergueu os olhos, assustados e temerosos, e disse:
- Foi ela. Ela... – Ip parecia prestes a implodir. – Ela usou o sangue. Ela os trouxe de volta, June...
E começou a chorar. O comandante trocou olhares com os oficiais mais graduados e não se dignou a tentar compreender as insanidades que o garoto proferia. O trauma da guerra tinha esse poder sob as mentes mais frágeis. Ordenou que o levassem e o dessem algo para comer e um lugar para descansar.
Ninguém saberia o que aconteceu naquela noite. Os nomes de Crest, Avo, Vice e tantos outros não inspirariam canções. Ninguém saberia o que June fora capaz de fazer. Seus esforços, contudo, e acima de tudo seu sacrifício, salvaguardaram a cidade de Eferest de sua irrefreável ruína.
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A Última Fortaleza
FantasyConfrontados com um inimigo misterioso, um reduzido regimento é forçado a defender sua casa das criaturas invasoras enquanto aguardam pela chegada de reforços. O líder Crest, embora saiba de suas pífias chances, tenta fazer o sacrifício de seus home...