Cor de Creme

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Eu deveria odiá-la. Odiá-la. Odiá-la profundamente como odiei quando vi Celso com ela. Mas naquele momento, naquela sala brega e extremamente colorida como as roupas dela, não consegui.

Olhei pela janela, chovia muito e já era noite. Como quando Celso se matou. Minha pele se arrepiava só de pensar que, alguns níveis de andares acima e lá estava a cobertura de onde ele caiu. Me lembrei do ano em que o conheci como sendo meu rival na indústria, mas para minha surpresa um possível parceiro. Os anos de romance sórdido que se seguiram, as viagens pros lugares mais frios, pros mais quentes.

Lembrei do término choroso e nebuloso, do casamento arranjado com o pai do Gabriel. De todas as coisas que tinha feito com o marido que queria ter feito com o Celso. De quando ele apareceu casado. Quando descobri que a Paula tinha começado como uma mera moça do café e então engravidado. Eu queria acreditar que era o golpe do baú, mesmo que minha sororidade gritasse mais alto que nenhuma mulher se prestaria a realizar o golpe que era mais lenda de novela que tudo.

Então quando Celso morreu e Paula assumiu a Terrare, eu tive a certeza de que alimentava tanta dor no coração não por ciúmes, mas por ódio. Eu sabia que ela era uma praga, uma infelicidade que cruzou o caminho do meu parceiro. Cravei uma guerra no mesmo momento. Cheguei a humilhá-la com prazer em público a acusando de assassinato. Sabia que isso mexia com ela de alguma forma porque Paula guardava segredos que queria levar pro túmulo, enterrada ao lado do Celso. No começo, eu iria tirá-los de sua boca mesmo que isso lhe custasse uma das mãos com as unhas pintadas.

Quando então ela ajoelhou na minha sala sóbria, clean, minimalista e chique, senti no meu peito algo que o terapeuta configurou como dó. A pena que senti foi por um mísero segundo maior que meu ódio e aceitei fundir as duas empresas. Eu queria tirar a Terrare das mãos dela e não ajudá-la a reerguer a empresa e levar crédito por isso. Mas não podia deixar todo o legado da minha paixão da vida se perder pra sempre por conta de uma perua.

A convivência com a Paula foi me afetando. Tinha dias que ela era sorrisos e conveniência e houveram dias que arrancamos cabelo uma da outra na sala da reunião. Os funcionários que antes babavam o ovo dela, agora me seguiam como cachorrinhos e a humilhavam. Ela tinha sido rebaixada pra moça do café, estagiária e depois minha assessora pessoal. Mas discutir ela começou a criar um efeito vitamínico em mim. Do tipo que precisamos todos os dias pra estar bem e, era duro admitir isso.

Peguei Paula chorando mais de uma vez na sala, enquanto olhava a foto do Celso. Chorando olhando a janela, olhando o terraço. Chorando no cemitério. Me peguei observando mais do que é apropriado observar alguém e, com o tempo, mesmo fora da Terrare, o binóculo era a distração e relaxamento de todos os dias.

E então veio o fatídico dia do aniversário de morte do Celso. Peguei as flores que acreditavam ser propícias para aquilo que sentia, quando a encontrei com a sua filha mirrada na frente do túmulo, um chapéu escuro grande, os óculos para esconder o choro e um buquê tão colorido quanto o que ela normalmente usava.

Apesar de sentir raiva e querer pisotear o buquê ali mesmo, percebi a tristeza no ambiente e fiquei atrás da árvore, respeitando o luto dela. Dei risada de mim mesma por estar respeitando algo na vida da Paula, sendo a chefe dela e podendo fazer o que quiser.

A menina magrela se retirou depois de se desentender brevemente com Paula e isso só me dava a certeza que minha vida era muito melhor que a dela, afinal, meu filho me bajulava, eu era a terra dele, o chão onde ele pisa, a raiz que o leva pra casa e ele era meu céu. O criei pra ser o melhor de mim, tudo que sou se tornou parte dele e tudo que é meu um dia ele herdaria, nós éramos unha e carne mesmo depois dele ter voltado maduro de New York. Tudo isso e muito mais, Paula Terrare não tinha.

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