Aquele era o dia em que mil sonhos morreriam e um único sonhonasceria.
O vento sabia. Era o primeiro dia de verão, mas rajadas de vento frioatingiam a cidadela no topo da colina com tanta ferocidade quanto o maisintenso inverno, chacoalhando as janelas com maldições e serpenteandoatravés de corredores gelados, como avisos sussurrados. Não havia comoescapar do que estava por vir.
Para o bem ou para o mal, as horas estavam avançando. Cerrei os olhosdiante do pensamento, sabendo que logo o dia seria dividido em dois, criandopara sempre o antes e o depois da minha vida, o que deveria acontecer em umato tão rápido que não haveria praticamente nada que eu pudesse fazer.
Empurrei-me para longe da janela, que estava embaçada pela minhaprópria respiração, e deixei as infinitas colinas de Morrighan com suas própriaspreocupações. Estava na hora de encarar o dia
As liturgias prescritas se passavam enquanto eram ordenadas, os rituais eritos seguiam conforme cada um deles havia sido precisamente estabelecido,tudo um testemunho à grandeza de Morrighan e dos Remanescentes, seu localde origem. Não protestei. A essa altura, eu havia sido tomada peloentorpecimento, mas então o meio-dia se aproximava, e meu coraçãogalopava uma vez mais enquanto eu encarava o último dos degraus queseparavam o aqui do lá.
Eu estava ali, deitada, nua, com a face voltada para baixo em uma mesa depedra dura, com os olhos focados no piso abaixo de mim enquanto estranhosraspavam as minhas costas com facas cegas. Permaneci perfeitamente imóvel,embora soubesse que as facas que roçavam minha pele estavam sendomanejadas por mãos cautelosas. Os portadores das facas estavam bastantecientes de que a vida deles dependia de suas habilidades. A perfeita imobilidadeajudava-me a esconder a humilhação de minha nudez enquanto mãos deestranhos me tocavam.
Pauline estava sentada ali perto, observando, provavelmente com os olhoscheios de preocupação. Eu não podia vê-la, com apenas o chão de ardósia sobmim e meus longos cabelos escuros caindo em volta de minha face em umrodopiante túnel preto que bloqueava o mundo lá fora, exceto pelo rasparrítmico das lâminas
A última faca foi mais abaixo, raspando a tenra parte côncava de minhascostas, logo acima de minhas nádegas, e lutei contra o instinto de puxá-la paralonge, mas, por fim, me encolhi. Um ofego coletivo se espalhou pela sala.
"Fique parada!", disse minha tia Cloris em tom de reprovação.
Senti a mão da minha mãe em minha cabeça, acariciando com gentilezameus cabelos.
"Mais alguns versos, Arabella. Nada além disso."
Embora ela tivesse dito isso tentando me confortar, fiquei enfurecida como nome formal que minha mãe insistia em usar, o nome de segunda mão quehavia pertencido a tantas outras antes de mim. Eu gostaria que pelo menosneste último dia em Morrighan, ela jogasse a formalidade de lado e usasse onome que eu preferia, o apelido carinhoso que meus irmãos me deram,encurtando um dos meus muitos nomes para apenas as últimas três letras: Lia.Uma alcunha simples que eu sentia como sendo mais verdadeira em relação aquem sou.
A raspagem das facas cessou. "Está terminado", declarou o PrimeiroArtesão. Os outros artesãos murmuraram em assentimento.
Ouvi uma bandeja sendo ruidosamente colocada em cima da mesa ao meulado e inalei o aroma de óleo de rosas, impossível de resistir. Pessoas arrastavamos pés ao meu redor para formar um círculo — minhas tias, minha mãe,Pauline, além de outras que haviam sido convocadas para testemunharem oofício —, e preces murmuradas começaram a ser entoadas. Fiquei olhandoenquanto o robe preto do sacerdote passava roçando por mim e sua voz erguiase acima das outras, enquanto ele borrifava óleo quente nas minhas costas.Esfregavam o óleo com seus dedos experientes, selando as incontáveistradições da Casa de Morrighan, aprofundando as promessas escritas nasminhas costas, proclamando os compromissos de hoje e garantindo a todos seusamanhãs.
Eles podem manter as esperanças, pensei com amargura enquanto minhamente saltava fora de sincronia, tentando manter a ordem em relação àstarefas que logo teria diante de mim — aquelas escritas apenas no meu coração enão em uma folha de papel. Mal ouvi o discurso formal do sacerdote, umaladainha em forma de cântico que falava de todas as necessidades deles e denenhuma das minhas.
Eu só tinha dezessete anos. Não tinha o direito de nutrir meus própriossonhos para o futuro?
"E para Arabella Celestine Idris Jezelia, Primeira Filha da Casa deMorrighan, os frutos do seu sacrifício e as bênçãos de..."
Ele continuava com a ladainha sem parar, as infinitas bênçãos e osintermináveis sacramentos requeridos, erguendo a voz e enchendo a sala, eentão, quando achei que não poderia mais suportar, por um misericordioso edoce instante, ele parou. O silêncio ressoava nos meus ouvidos. Respirei maisuma vez, e então a bênção final foi concedida
"Porque os Reinos ergueram-se das cinzas dos homens e estão construídossobre os ossos daqueles que foram perdidos, e para lá haveremos de retornar seo Céu assim desejar." Ele ergueu meu queixo com uma das mãos e, com opolegar da outra mão, borrou minha testa com cinzas
"Então assim haverá de ser para a Primeira Filha da Casa de Morrighan",finalizou minha mãe, pois assim ditava a tradição, e limpou as cinzas da minhatesta com um pano embebido em óleo
Fechei os olhos e abaixei a cabeça. Primeira Filha. Tanto uma bênçãoquanto uma maldição. E, se a verdade fosse conhecida, uma farsa.
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The Kiss Of Deception
FantasyMorrighan é um reino imerso em tradições, histórias e deveres, e a Primeira Filha da Casa Real, uma garota de 17 anos chamada Lia, decidiu fugir de um casamento arranjado que supostamente selaria a paz entre dois reinos através de uma aliança políti...