O início de um fim trágico e patético de desconhecidos

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Ainda é madrugada, aproximadamente duas e cinquenta da manhã, quando Raquel abre as cortinas que cobrem a janela retangular, e isso produz um barulho estridente na barra de ferro. Estou sonolenta, bocejo alto e coço os olhos que estão melados, preguiçosos e cansados. Olho para ela com um certo desdém, reclamando em silêncio por estar cedo demais e eu odiar isso.

– Bom dia! – Raquel sorri para mim levemente quando estremeço os braços por causa da ventania forte que adentra o quarto e me deixa arrepiada. Franzo as sobrancelhas finas e me sento na cama sem fazer muito esforço.

– Oi, mãe. Bom dia. – Estico os braços para cima, realizando um breve alongamento, e Raquel me dá um olhar rápido. Estou vestindo apenas uma blusa de tecido fino e uma calcinha velha, porém confortável. Calcinhas de algodão são ótimas para dormir!

Raquel me faz sair de cima da cama e começa a arrumar a colcha ao mesmo tempo que me empurra para o banheiro, entrega uma escova de cabelo e franze os lábios. Acho que ela está um pouco impaciente. Na verdade, acho que a palavra certa seria ansiosa.

– Hoje é seu primeiro dia de aula, meu amor. Não está empolgada? – questiona mesmo sabendo qual será minha resposta. Reviro os olhos de forma dramática e penteio os cabelos loiros, prendendo-os em um nó no alto da cabeça. – Não demore, viu? Faltam, mais ou menos, uns quarenta quilômetros até chegarmos a Porto Alegre. E, por favor, seja rápida. Quero chegar antes do amanhecer.

Quando ela sai do banheiro, olho para meu reflexo no espelho. Olhar cansado, cheio de olheiras devido a noites mal dormidas, boca seca, clavícula um pouco evidente, mas um par de peitos de dar inveja. Já até pensei em fazer cirurgia para diminuí-los, mas com o tempo eu fui mudando de ideia. Hoje em dia sou completamente apaixonada por eles e, de certo modo, acredito que fazem parte do meu chame.

Procuro uma base e meu pó compacto que está quase no fim dentro de uma minibolsa preta surrada, fazendo todo o procedimento de "aperfeiçoar" minha pele antes de sair do quarto. Não faço isso por vaidade, mas por pura necessidade, é claro.

– Vamos, Renata? – chama quando me aproximo do carro. – Está pronta? – Eu apenas concordo com a cabeça e entro no automóvel, colocando o cinto de segurança.

– Afinal, por que estamos indo embora? De novo – pergunto ao apoiar o cotovelo na porta do carro e colocar o punho fechado no queixo, completamente entediada.

– Eu já lhe expliquei diversas vezes. Eu passei em um concurso e, além disso, poderei conhecer o Fórum de Porto Alegre, o que para mim é uma coisa incrível.

– Acho que viajamos demais.

– Não se preocupe com isso. Não é como se você sempre se importasse com os locais em que moramos.

– Eu sei disso, mas tenho algumas dúvidas quanto à possibilidade de gostar de Porto Alegre.

– Hum... – Raquel pensa por um momento. – Ao menos tente ser mais positiva desta vez. Veja o lado bom, meu amor: não foi necessário arrumar uma mala sequer.

– Sim! Percebi que praticamente viemos com a roupa do corpo. Estava assim tão desesperada para sair de onde estávamos? – pergunto, mas não obtenho uma resposta, então reviro os olhos mais uma vez e suspiro.

– Bem... – Começa ao mudar de assunto. – Pode ser um recomeço.

– Que tipo de recomeço você quer dizer? – Continuo olhando para a estrada escura, alheia aos seus comentários que não me afetam.

– Pense bem, Renata. Você pode fazer amigos, prestar um vestibular finalmente, entrar em uma faculdade e...

– E?

– E não vai mais precisar fazer suas atividades.

– Não seja ridícula! – retruco de imediato ao olhar para ela com reprovação. Percebo que Raquel segura o volante com mais força e respira fundo.

– Foi apenas uma sugestão amigável. Estou dizendo para você tentar ser mais pacífica, pois sei que consegue fazer isso se realmente tiver interesse.

Não falo mais nada depois disso. Passamos o restante do caminho em total silêncio e o sono retorna lentamente, até que as luzes fortes da cidade brilham e eu me desperto. Depois de alguns minutos atravessando avenidas, chegamos a uma casa duplex relativamente grande de cor neutra.

Saímos do carro e eu olho para o portão branco. Estacionado de frente para ele está um carro preto, desligado. Semicerro os olhos e cruzo os braços quando Nicolas sai de dentro do veículo e caminha graciosamente até nós.

Quem é Nicolas? Ele é um jovem empresário no auge dos seus vinte e seis anos que herdou uma empresa multibilionária do pai e, por isso, está sempre ausente. Conheci Nicolas há alguns anos e confesso que posso ser um pouco obcecada por ele. Não porque eu goste dele ou coisa parecida, apenas porque ele transa bem e, também, porque me ensinou tudo que eu sei.

Fico realmente admirada por vê-lo depois de tanto tempo, mas não deixo isso transparente em meu rosto.

Ele, como um cavalheiro educado, beija as costas da minha mão e sorri educadamente.

– Então esse foi o motivo para virmos apenas com as roupas do corpo? Você foi o responsável pela casa e tudo que tem dentro dela? – pergunto ao cruzar os braços.

– Falando assim, parece que está desapontada. – Ele solta uma risada frouxa.

– Não estou. Estou apenas surpresa com sua cara de pau...

– Aprendi com a melhor – comenta e, ao dizer isso, consegue me fazer sorrir. – É bom a ver sorrindo, Renata. Continua linda, se me permite dizer.

– Não seja idiota. Eu tenho espelho em casa.

– Não acha que a casa é um pouco grande demais para nós duas, Nicolas? – pergunta Raquel.

– Talvez. Sei que não gosta de casas grandes, Raquel, mas eu pensei mais no conforto da sua família e no fato dela gostar de certas coisas mais peculiares, se é que me entende.

– Compreendo, sim. Agradeço sua ajuda. – Ela o abraça gentilmente e nós três entramos na residência.

Raquel logo se acomoda na cozinha e eu subo com Nicolas para conhecer meu quarto.

– Está empolgada para a aula? – pergunto ao entrarmos.

– Não. Uma garota de quase vinte anos tendo que aturar adolescentes falando sobre provas, vestibular e camisinha... Isso parece empolgante para você? – Rio baixo e ajeito o meu cabelo loiro na frente do rosto, o que chama a atenção de Nicolas.

– Os anos passam e você continua escondendo o rosto.

– Não existe qualquer necessidade em mostrá-lo para pessoas desconhecidas. – Sorrio de lado e olho o guarda-roupa. – Você sabe, meu bem... Hoje em dia sou mais controlada quanto ao meu comportamento, graças a você, é claro. Mas não se esqueça de que, ainda sim, evito me misturar e socializo por pura necessidade.

– Devo crer que suas habilidades continuam intactas ou você enfraqueceu? – Nicolas fala ao se aproximar do meu ouvido, por trás, e toca meu ombro com a mão. Eu seguro o pulso dele e giro seu braço rapidamente, fazendo com que caia de joelhos enquanto puxo o braço retorcido, e ele solta um breve gemido. Com a mão livre, bate três vezes no chão e eu o solto de forma abrupta.

– Não me teste, Nick. Você é gostoso, mas não pense que hesitarei em te matar se me provocar sem motivo.

– Eu sei. – Dito isso, ele levanta e ajeita a roupa muito bem engomada. – Se me der licença, senhorita, verei como sua mãe está se saindo na cozinha. Volto em breve.

Eu não digo nada, apenas deixo que ele parta e vou ao banheiro tomar um banho quente. Ao olhar para o espelho, sorrio.

– Não se preocupe, Renata. Essa confusão acaba de começar!


Para que preocuparmo-nos com a morte? A vida tem tantos problemas que temos de resolver primeiro.

Confúcio

Confusão - O Fogo da Ira (Livro 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora