Myren Wyatt encarava o corpo sem vida de Eliot, ciente de que a Assembleia já se reunia e a chamaria em breve para depor. Apesar dos rumores que se espalhavam, ela não o havia matado, e quase se sentia insultada por tais boatos. Quem quer que o tivesse feito era muito pouco profissional a julgar pela quantidade de sangue já seco e os cortes nos lugares errados. Há anos não cometia esse tipo de erro, mas ainda assim, falhara. Fora estúpida o suficiente para não o deixar pendurado àquele muro quando poderia ter lhe dado as costas. Agora pagaria por isso sendo obrigada a sentir o cheiro de carne apodrecendo até que seus olhos lacrimejassem. Ela odiava aquilo, mas decerto era uma boa punição.
Fitando o cadáver, Wyatt se perguntou se alguém apareceria para consertá-lo antes de devolver o corpo. Um longo corte nas laterais da boca havia separado o belo rosto em dois. Partes de pele haviam sido arrancadas e o olho direito parecia haver sido perfurado. O nariz se encontrava completamente torto e marcas de garras desciam da mandíbula ao peito exposto. O assassino atingira uma veia importante, a causa da morte mais justificável já que ele não sobreviveria à quantidade de sangue que provavelmente jorrara. Era possível ver suas tripas pelo longo rasgo em seu abdômen. Uma bagunça de fato.
Som de madeira rangendo ecoou pelo cômodo quando um homem de meia idade entrou, posicionando-se ao seu lado. Os olhos dele percorreram o ferimento no pescoço do garoto com a mesma concentração de um artista que admira um obra recém-pintada. Ela não se impressionou com a frieza.
— Onde o encontrou?
— Amarrado pelos pulsos no Muro de Ésmera, nove horas atrás. Demoramos para fazer o reconhecimento, mas a família real já foi informada.
— E você está esperando alguém para buscá-lo.
Ela assentiu, mesmo não sendo uma pergunta. O silêncio gutural destinado apenas aos mortos preencheu a sala, e só se ouviu a respiração pesada do homem. Myren permanecia tão silenciosa quanto uma sombra, sem desviar a atenção das marcas de violência.
— Parece distante, Rosa Branca. Digo, mais do que usual. O que aflige seu coraçãozinho de víbora?
— Ter que ficar de babá de alguém que nem mesmo respira. Uma perda do meu tempo.
— Muitas pessoas considerariam um privilégio guardar o corpo de um príncipe.
— Adoraria ceder meu privilégio para o primeiro que se oferecesse. Pessoas são estúpidas, Kasper — Myren virou-se para encará-lo — Por favor, me diga que a maldita Assembleia está pronta.
Kasper hesitou antes de responder.
— Final da tarde. Tieyr estará lá como representante.
A menção ao nome a fez piscar, o único indício de sua surpresa. Há anos o segundo príncipe abandonara a família, entrando em um navio para uma viagem a outro continente, sem se incomodar com despedidas formais. Seis meses após sua partida, uma carta com o selo real chegara. As lágrimas derramadas pela rainha ao percorrer as linhas escritas deixaram claro que o filho mais novo não tinha a mínima intenção de pisar em suas terras novamente.
— Achei que Tieyr havia abandonado seu título. — Murmurou em tom de desdém.
— Embora seja um tolo e egoísta, não se pode abandonar seu sangue. Sua mãe ficou arrasada com o desaparecimento de Eliot e imediatamente escreveu para o tão querido filhinho, solicitando sua presença. Agora a Coroa resta a ele, não havia mais como fugir para outro lado do mundo. Espero que não se importe em vê-lo.
O sorriso maldoso de Myren arrancou uma risada de Kasper, mas ambos sabiam da resposta: ela não tinha escolha. Comunicara sobre o corpo e agora era a responsável por ele até que os líderes da Assembleia decidissem o que fazer. Seus movimentos eram monitorados e ela não poderia ir embora sem ser considerada culpada do assassinato. As leis eram muito mal planejadas, apenas uma forma preguiçosa de mentir para o povo com falsas promessas de segurança, mas não era algo aberto a contestações. Poderia facilmente ter abandonado Eliot para as traças, fingindo que nunca o havia visto, mas algo a fez ficar. Não foi por devoção ao rei e à rainha, menos ainda por ser uma pessoa misericordiosa. Repetia a si mesma que havia sido pela recompensa que receberia, apesar de não acreditar nisso com muita firmeza. Era alguma coisa na forma como a pessoa agira, ansioso apenas por torturar, que a deixava inquieta. Impossível dizer se o fato de a vítima ser um príncipe era uma grande coincidência ou proposital. Não houvera chantagem, não houvera mistério, apenas um príncipe desaparecido cuja carcaça fora encontrada dias depois. Mesmo com a lista de milhões de pessoas as quais poderiam ter cometido tal crime surgindo em sua cabeça, a motivação era uma peça do quebra-cabeça que não encaixava, e nenhuma explicação convincente nascera nas nove horas que se passaram.
Kasper parecia ter suas próprias suspeitas. Mesmo que não fossem próximos, passavam tempo suficiente juntos para saber que as sobrancelhas franzidas, o bater incessante dos pés e o estalar dos dedos queriam dizer algo. Ele não falaria até que chegasse a hora e ela não insistiria. Não desejava mais participação no caso do que já estava sendo forçada a tomar, vigiando. O homem cobriu Eliot com um lençol de linho branco, um gesto simples, mas que tornou mais real a morte do herdeiro. Antes de se retirar, fez uma oração silenciosa a qualquer deus que estivesse disposto a ouvir e partiu, deixando-a mais uma vez sozinha. Ou pelo menos em partes.
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Intocável
FantasyTodo aspirante a escritor precisa começar a por as palavras no papel. Essa história é minha forma de enfrentar as crenças limitantes que tenho com relação à escrita. Myren Wyatt acaba de reportar o corpo do herdeiro desaparecido à Assembleia, tornan...