Dias chuvosos

2 1 0
                                    


Neste mundo já vi todo tipo de história algumas são românticas outras nem tanto, existem as dramáticas e as aterrorizantes e há também aquelas que contém graciosamente uma delicada dose de humor. Confesso, porém que nenhuma me deixou mais acabrunhado do que a história do garoto que tinha medo da chuva!

Estranho, não é? Mas permita-me explicar que o que o assustava não era o temor comum de seus raios e trovões, mas sim que as torrentes arrastassem embora toda a sua vida de novo.

Seu nome era Benjamim e a vida a qual me refiro ficava ali na subida do morro de Santa Cecília. Entretanto, há exatamente três anos, quando a chuva veio arrastou tudo o que estava lá em cima causando uma das maiores catástrofes que esta cidade já viu. Houve quem ajudasse, houve quem chorasse e até quem se comprometeu a fazer algo a respeito, contudo, com o passar do tempo não houve mais ninguém que se lembrasse.

Apesar de tudo, isso não foi o suficiente para cessar sua fome pela vida, pois dia após dia Benjamim estava decidido a viver e fazia o que podia para sobreviver em meio ao caos desta cidade frenética.

A água levou sua família, sua moradia e até seus livros e o chapéu predileto, quando as tragédias acontecem elas não sabem muito a diferença de um chapéu e um familiar. E tudo o que lhe restou foi o que agora ele tem por melhor amigo, um vira-lata caramelo ao qual deu o nome de Bob. Juntos passam o dia a pedir dinheiro no semáforo, quando não conseguem algum serviço por aí.

Quem lhes garante um almoço aqui acolá é uma senhora dona de um quiosque que se chama Conceição, uma pobre alma gentil que conseguiu enxergar ali dois seres vivos por debaixo de tanta sujeira e humilhação. Porém, apesar da ajuda bem-vinda o garoto tinha fome, frio, o que tinha para chamar de lar era uma caixa de papelão que rasgou e usou todas as noites como cama, e ainda conseguiu encontrar outra para Bob, bem, não era um palácio para que pudesse se gabar, no entanto mesmo sem teto e paredes era a sua casa. O lugar para onde ia no final do dia, o local onde despejava as lágrimas da alma já calejada de tantas tapas que a vida dá.

Ali devaneava em seus mais variados projetos que todas as noites produzia em sua imaginação, o jovem era criativo e a criatividade sempre o ajudava a dar um jeitinho nas coisas. Também era talentoso, sonhava em tornar-se algum dia num eximo artista, porém para seu sonho fazia um tempo ao qual não se dedicava.

Nasce mais um dia, e lá se vai Benjamim com seu cão, não baixa o olhar, encara a vida de cabeça erguida, não se deixa ser menos que ninguém, embora que para muitos seja inexistente. A cidade cresce, prédios se erguem, e em meio a tanta grandeza tem gente que desaparece.

 Apesar de sua invisibilidade Benjamim era convicto de que um dia seria um grande pintor. “Porque a arte é necessária para dar vida a vida, Bob. Ela é beleza e criticidade, não me conformo que episódios tão violentos caiam no esquecimento assim tão fácil, não concordo que as autoridades demorem tanto para fazer algo a respeito, um dia vou pintar o desmoronamento do morro de Santa Cecília assim como Picasso pintou Guernica, vou pintar toda a gente, a dor, a emoção, a vida que lá existia e mostrar ao mundo a realidade que passa despercebida aos olhos à primeira vista.” O cachorro parece questionar com latidos e ele parece entender “todo mundo vai gostar da minha arte sim, Bob, porque eu darei o melhor de mim ‘o que quer que você faça, faça bem feito. Faça tão bem feito que quando as pessoas te virem fazendo elas queiram voltar e ver você fazer de novo e queiram trazer outros para mostrar o quão bem você faz aquilo que faz.’ E o cachorro late outra vez.

Benjamim lança um leve sorriso ao amigo fiel, sorriso este que não demora muito a ser roubado pelo nublado que se formava. E havia motivos para tal, pois quando as primeiras gotas começaram a cair fê-los fugir e abrigar-se debaixo de uma ponte. Estava frio quando a chuva engrossou.

Esperando a chuva passar, ali debaixo daquela ponte onde de vez em quando passava algum automóvel, o jovem encontrou algo inusitado. Latas de tinta spray, e não estavam vazias. Animado, recordou dos tempos em que com seu grupo de amigos costumava fazer grafites em sua comunidade. O povo de Santa Cecília alegrava-se quando se via envolto de tantas cores.

Sem mais nem menos pôs-se a criar. Arrancava as figuras de sua cachola onde há tempos viam mofando e jogava-as no concreto. Fazia brotar cor em meio ao cinza. Entusiasmava-se com o que via, e enxergava ali o morro de Santa Cecília tomando forma a cada traço. Foi grafitando seu sonhado retrato do dia mais aflito de sua vida e como a chuva se demorou deu-lhe tempo para pintar algo a mais. “Veja Bob, este é você” e além de Bob fez grafites sobre muitas outras coisas que havia vivido.

O temporal passou mais tarde que o previsto deixando ruas alagadas como rastro de sua presença. Já era noite quando o jovem conseguiu voltar para casa e olhe que azar a chuva havia destruído sua casinha de papelão! Entristecido sentou na calçada e escorou-se na parede de uma loja fechada, Bob ajeitou-se por cima dele. A tristeza não demorou muito pois logo fora expulsa pelas lembranças de sua tarde prazerosa e com um sorriso no rosto adormeceu. Aquela tarde seria somente o estopim de uma vida nova, agora não mais pretendia adiar seus sonhos, mas estava decidido que pintaria todos os dias dali em diante.

Naquela noite fazia um frio surreal, era uma frente fria que surgia do Sul do país e já se levantava ao Centro-Sul, feliz daquele que tinha sua cama quentinha para dormir, o que não era o caso de Benjamim que daquela noite gélida nunca mais acordou.

No amanhecer os carros que entravam debaixo da ponte não saiam depois de um bom tempo, isso porque os motoristas paravam e admirados lá ficavam saboreando aquela obra de arte. As notícias se espalhavam e muita gente ia até lá só para ver, até mesmo dona Conceição foi. E foram porque ele fez bem feito.

‘O que quer que você faça, faça bem feito. Faça tão bem feito que quando as pessoas te virem fazendo elas queiram voltar e ver você fazer de novo e queiram trazer outros para mostrar o quão bem você faz aquilo que faz.’ – Disney, Walt.

Dias ChuvososOnde histórias criam vida. Descubra agora