L.A

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Lee Conner.

Odeio acordar de manhã sentindo o vento vindo da minha janela aberta. Devia ter fechado ela ontem à noite, não consigo me lembrar o porquê não a fechei. Talvez fosse o cansaço ou a minha dor de cabeça insistente que faz eu delirar, pode ser o fato que Lily fechava minha janela todas as noites pelos últimos anos e agora fica difícil lembrar que faz frios de noite em Mississipi, faz frio em mim também, mas minha irmã não pode fechar a janela da minha vida.
Ela se foi, e não há nada que a minha mente possa fazer para ela voltar, nenhuma ideia mirabolante de filme futurístico. Ela se foi e eu não posso culpar a janela aberta e nem o vento gelado que hoje faz, muito menos a pessoa fria que me tornei, só posso culpar ela a sua saída dramática da minha vida.
Lembro da manhã do dia em que ela morreu, o novo corte de cabelo, a camiseta florida, as chaves do carro na mão, a revirada de olhos dramática e o tênis azul, o modo como ela saiu ansiosa de casa, me lembro e me apego a isso como se fosse ainda uma parte dela, mas só me restava isso, as roupas, o celular antigo descarregado na gaveta, a cama desarrumada que ela nunca mais irá ouvir a mamãe reclamar que ela precisava voltar a ser caprichosa com o próprio quarto. Era só isso que me restava, tudo que ela nunca quis levar com ela.
Sempre foi assim com a Lily, eu como mais nova, ficava com o que ela não queria mais, as roupas, sapatos, perfumes, o armário da escola, os livros de física, e a vida. A vida dela agora parecia a minha como um puro clichê, um deja-vu maldito. Mamãe fez eu entrar na vida dela, ser a cópia de Lily Agnes Conner, era o papel de atriz do resto da minha vida no Mississipi.
Lily era demais, Lily era a Lily, sei que é muito resumido dizer isso, mas, como descrever a perfeição sem não apenas chamar de Lily Agnes?
Eu sou apenas a Lee Anne, como a sombra do Peter Pan eu a via brilhar em ser ela mesma com maestria de longe. Seus perfeitos cabelos loiros como cascatas de ouro desciam pelas costas, sua altura mediana com a postura majestosa, o formato do rosto que a deixava quase fofa, e o corpo de uma perfeita líder de torcida, a voz meiga de cantora do coral, e as unhas coloridas, a combinação letal para a popular de Turn Five High School, e por mais que chocasse nossa cidade nós éramos irmãs, e mesmo tão diferentes Lily via meus documentários sobre mistério e eu a ouvia recitar Machado de Assis, e assim eu era feliz.
Continuei encarando a janela aberta, havia um tedio dentro de mim que me fazia pensar se toda aquela rotina chata era necessária, afinal hoje é dia 09 de agosto de 2016, uma terça feira fria e sem sentido, véspera do aniversário da minha irmã. Estranho pensar que alguns meses atrás estava lamentando um ano de sua morte, e hoje poderia estar comemorando mais um ano de sua vida, o mais bizarro é que eu pela última vez, serei mais nova que a minha irmã mais velha. Agora eu não tenho uma irmã mais velha.
— Escola, Lee! — Ouço minha mãe bater na porta e avisar. Ela sabe que estou acordada, nunca perdi a hora e com o tempo parei de precisar do despertador. — Lee! — mas ela insiste em gritar porque Lily perdia a hora e tinha dificuldade para acordar, mau humor pela manhã, nó nos cabelos e uma confusão para escolher uma roupa legal para ir para escola, e mamãe tinha que gritar para ela acordar e se apressar, e agora ela sente falta disso, então me grita pelas manhãs como se eu não fosse a Lee que acorda cedo cantando músicas chicletes e usa moletom e prende o cabelo em um coque mal feito.
— Você não levantou ainda Lee! Mas você nunca perde a hora. - Havia uma certa confusão em seu rosto quando ela abriu a porta do quarto e me viu ainda coberta deitada na cama. Quis revirar os olhos e dizer que estava cumprido o papel que ela me deu, mas minha mãe não via o que estava rolando nos últimos meses.
— Só estou com preguiça hoje mãe, 20 minutos e estou lá embaixo, prometo. — Sorri para deixar claro que estava bem, ela demorou um pouco para assentir e sair do quarto fechando a porta. Ouvi seus passos se afastarem do quarto, mas como um passe de mágica ela abriu a porta novamente e me encarou por um segundo:
- Seu pai quer falar com você Lee, e você tem 19 minutos agora, então levante. - Minha mãe era professora de ciências no fundamental, ela nunca me deu aula, mas aquele tom de voz era o mesmo que ela dava para os alunos, era um aviso firme, mas cuidadoso, de certa forma distante.
Eu levantei e passei por ela para tomar banho, deixei um beijo em sua bochecha como fazia quando eu e Lily éramos pequenas, e me preparei para aquele dia. Nas últimas semanas por indicação da terapeuta eu fazia planos diários, criava uma rotina mental. Para hoje, assim como ontem, minha agenda estava em branco.
Quando eu desci a até a cozinha, por um breve momento perdida no cheiro do café fresco que a minha mãe faz todas as manhãs, quase consegui ver minha irmã sentada no seu lugar favorito da mesa. Sentei na cadeira do lado da dela, de frente para o meu pai, e do lado da que minha mãe normalmente sentava. Meu pai estava focado no jornal, deixando os waffles esfriarem, sem se importar com a cadeira vazia. É estranho pensar que ninguém faz ou mexe nas coisas dela?
Minha mãe colocou o suco de laranja na mesa e meu pai suspirou. "Outra vez" ele deve ter pensado. Eu sorri sem jeito, quando vi ela fechar os olhos brava com si mesma e sentar ao meu lado.
Ninguém naquela mesa gostava de suco de laranja, eu achava enjoativo, papai achava que laranja era algo salgado, e para mamãe era indiferente. Mas para minha irmã era o melhor suco do mundo, a energia da manhã, por isso sempre tinha feito da própria fruta todas as manhãs na mesa, dês que Lily tomou a primeira vez quando éramos crianças.
Minha mãe sabe que ela não estava aqui para beber, e que ninguém vai beber por ela, mesmo assim mamãe compra laranjas toda semana na feira, faz ao menos um copo de suco todos os dias e conta waffles como se Lily estivesse aqui. Mas ela não está! E nunca falamos sobre isso, só tem pistas de que um dia ela esteve aqui e que sentimos falta dela. Sequer parece permitido chorar agora, afinal um ano é o suficiente para esquecer a pessoa que você mais amou e confiou na vida, um ano é suficiente para a mamãe não se lembrar de todas as apresentações de musicais que ela já foi, é o suficiente para meu pai esquecer as vezes que teve que ir buscar o carro em lugares estranhos porque ela esquecia de abastecer, e é o suficiente para eu esquecer da pessoa que me levava para as aulas de danças aos fim de semana, e me deu um chaveiro tosco de "L.A" para usarmos juntas. Quem eu e os meus pais queremos enganar? Um ano, um dia, uma década, acho que nunca vai ter tempo suficiente para esquecermos da Lily.
Lembro quando fez cerca de uma semana que ela havia morrido e minha mãe disse que estava bem para fazer o café da manhã sem a ajuda da Claire, nossa vizinha e a mãe da minha melhor amiga Therese. Minha mãe fez a mesa, fritou panquecas naquela manhã, fez o café fresco e colocou o jornal na mesa, espremeu as laranjas e quando estava levando o copo até a mesa se tocou novamente da realidade esmagadora. Me recordo perfeitamente do grito que minha mãe deu antes de cair no chão, o cheiro de suco de laranja por toda a casa, os cacos de vidro no piso e também em seus pés, o choro doído. Minha mãe apoiou as mãos no chão tentando ter forças para se levantar, e naquele dia eu sentei ao seu lado no meio de toda a dor, vidro e suco de laranja, chorei junto com ela pela saudade da Lily, meu pai ajudou a gente a se levantar e nos três chorávamos enquanto limpávamos a bagunça em nosso lar espatifado. Hoje, pensando nisso, não consigo lembrar em qual momento achamos que era o suficiente, quando paramos de sofrer pela falta da minha irmã, quando começamos a encarar o copo de suco que toda manhã ia pro lixo como algo normal, como se fosse uma herança estupida passada dia por dia. Era o copo da minha irmã, o suco favorito e a cadeira dela, mas seu nome não era dito dentro daquela casa a pelo menos a 6 meses. Quando ela se tornou algo proibido dentro do próprio lar?
Eu já estava começando a ficar agoniada com os pensamentos, a fome sumiu do meu estomago e eu queria voltar para minha cama. Queria também gritar, mas isso ficaria para outro dia. Me levantei da mesa, sem cerimônia, sem dizer nada, e decido pegar minha mochila perto da escada e vou saindo da cozinha para sala. O plano era simples, vou até a porta digo tchau, assisto a primeira aula e se ainda quiser minha cama, volto para casa. Repito o plano três vezes e me sinto pronta para fingir que está tudo bem, com a mochila nas costas vou indo em direção a porta. Pela casa pequena e sem portas nas divisões, consigo ver meus pais cochichando algo. Respiro fundo, e quando abro minha boca para me despedir vejo eles em pé tomando coragem para o próprio dia deles ou para me dizer algo, não sei bem, ambos são uma incógnita para mim agora.

— Lee... — Ouço meu pai pigarrear — Preciso falar uma coisa com você. Sua mãe comentou? — Eu assento devagar. Penso em voltar alguns passos em direção a cozinha, mas meus pais já estão na minha frente, eu olho de relance a porta a minha direita. — Não vou me demorar querida. — Ele ri nervoso e minha mãe entrega um bolo de chave a ele. — O carro, ele foi recuperado e restaurado, trocamos quase tudo Lee.
— Ainda é a mesma cor Josh. — Minha mãe fala olhando com os olhos cerrados para ele. Eu ainda não sabia onde aquele papo ia dar. — Mas podemos pintar do que você quiser querida. — Minha mãe sorriu confiante para mim.
— Annelise o tom de azul daquele carro é ótimo! — Meu pai bufou. — Mas, agora que ele é seu Lee faça o que quiser. — Ele esticou a chave para mim e foi quando as peças se juntaram na minha cabeça.
Carro restaurado de um ótimo tom de azul, com a chave presa em um tosto chaveiro de "L.A". Era o carro da Lily!
— Vocês estão brincando com a porra da minha cara não estão? — Eu estava a um ponto de explodir.
— Olha o linguajar Lee Anne Conner! — Minha mãe gritou.
— Olha o de vocês, pelo amor de Deus! — Olhei para o meu pai que estava imóvel. — Ela morreu naquele carro pai! — Senti as lagrimas encherem meus olhos. — Ela era minha irmã, e morreu na droga da aquele carro! Eu não- eu não vou entrar nele. — Estava segurando o máximo que podia todas as lagrimas que queriam escorrer pelo meu rosto.
— Lee, o carro está reformado, e ela iria querer que você ficasse com ele. — Meu pai parecia calmo, talvez apreensivo.
— Vocês, — Solucei. — Não sabem o que ela iria querer. — As lagrimas começaram a cair como em uma competição de corrida pela minha bochecha. — Eu não entro em um carro dês da aquela noite, e vocês sabem. Sabem que é por ela!
— Lee, está tudo bem você voltar a sua rotina, dirigir o carro dela não significa que, —
— Não significa o quê? Que eu não esqueci dela como vocês fingem que fazem? — Interrompi minha mãe. — Chega! Eu não quero o carro em que a minha irmã se matou! E nenhum outro. — Saí de casa o mais rápido que pude.
Falar de Lily deixavam eles sem palavras, mas falar de como ela morreu, deixavam eles estáticos como obras de mármore. Lily ter se matado era um tabu e também algo que ninguém tinha certeza. Às vezes eu gostava de como todos na cidade encaravam a morte dela, um acidente de carro, mas eu sabia a ótima motorista que a Lily era, eu sabia das drogas que acharam no carro e do álcool no sangue, mas além disso eu sabia quão estranha ela estava nas semanas antes de morrer. Eu tinha que viver com a verdade jogada no meu colo, Lily Agnes Conner tinha se matado.


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⏰ Última atualização: Apr 04, 2022 ⏰

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