O odor de lixão não incomoda as narinas dos dois garotos. A razão dessa falta é devido ao tempo em que estavam andando entre as latas velhas e enferrujadas, os plásticos vazios, os móveis incompletos e os vidros destroçados, todos os objetos abandonados por mãos humanas. Os objetos em cena retornam às mãos, mas de outra maneira. João pega a marreta e bate com força na garrafa de vidro. A garrafa voa longe quase que por completo. Mais vidro quebrado a se misturar no lixo. Abaixo da garrafa, um banco de tronco de árvore ao chão, onde Ailton se prepara para colocar outro item, observando os enlatados abertos e um conjunto de lâmpadas estouradas.
João joga a marreta para o lado e faz o mesmo trabalho de procura. Ailton vira para João e pergunta:
— Tu não acha melhor a gente achar algo maior?
João parece não escutá-lo, porque as mãos procuram mais outra garrafa para arremessar para longe. Não demora muito para encontrar uma garrafa inteira naquele monte, mas é sempre um exercício chato, porque João gosta das garrafas mais próximas do novo e resistentes, então fica pensando na próxima a procurar mesmo já tendo uma inteira em mãos. Agora, ele segura uma de cerveja Heineken, uma das poucas inteiras entre as várias.
Ailton chama atenção de João, mexendo um pouco no seu braço que não segura a cerveja.
— Maior como? — João responde, deixando claro que é um garoto atento, só não sobre aquilo que não o interessa.
— Um carro, por exemplo.
— Para quê? — João faz uma careta de desaprovação. — O objetivo aqui é acertar. Quanto menor a parada, mais difícil.
Ailton decide não discutir com João, porque ele é um caba complicado, como dizia o seu pai. A sua mãe nunca vê João como um bom exemplo e já chegou a gritar com Ailton por ainda andarem juntos. Mas, o que João tem de ser desagradável, Ailton possui de teimosia, ainda que Ailton seja um bom garoto diferente do amigo de acordo com as tias da rua, seja lá o que isso significa.
A face de João muda e um sorriso travesso surge em seu rosto.
— Já sei. — o lapso de ideia da sua mente finalmente se tornando verbal.
João corre para trás e se distancia do banco de tronco cortado. Ele fecha um dos olhos, com se estivesse focando apenas em um ponto do ambiente, o sorriso sem sair do rosto, mas depois fecha a cara para retornar a sua expressão irritada habitual e olha para Ailton, parado ao lado do tronco.
— Sai daí. — João manda.
— O que tu vai fazer? — Ailton pergunta, caminhando em direção ao amigo agora, com os olhos brilhantes de curiosidade infantil.
— Vem aqui pra trás ou quer perder um dente, burro do caralho?!
Ailton se posiciona ao lado do amigo e levanta os braços, em uma espécie de torcida. João se prepara para arremessar a marreta e ele reflete se tem força o suficiente para fazê-lo por alguns milésimos de segundo, porém nada é mais emocionante do que a adrenalina de tentar quebrar um objeto naquela distância. João impulsiona a marreta para trás bruscamente com dificuldade. O braço fraqueja. A marreta bate em algo antes de voar para longe. João a vê caindo próximo ao seu pé, mas surpreendentemente não o machuca. O grito de Ailton é escutado, mas não é de brincadeira ou deboche.
O corpo de João vira para descobrir a origem do grito e os seus olhos se esbugalham de horror. O antebraço de Ailton estava torto. Trezentos pensamentos desenfreados passam em sua cabeça, sem João saber o que fazer, como a sandália de sua mãe voando na sua cara antes de João justificar o que aconteceu. Ailton apenas tem como resposta a dor cair de joelhos no chão, com as lágrimas de seus olhos percorrendo o rosto.
Uma ideia absurda de pegar a marreta e bater na cabeça de Ailton perpassa a sua mente também, enquanto João encara o seu corpo se agonizando.
De repente, Ailton para de agonizar. Mesmo com medo, João tenta ver o que há de errado com ele. É possível alguém ficar macho assim, do nada, ainda mais em sua situação como aquela?
— Voltou. — João escuta a voz de Ailton baixa, mas só consegue entender o motivo do tom de voz quando vê o rosto assustado do amigo.
— Do que você...
O antebraço de Ailton estava ereto, como se não tivesse sido acertado há minutos atrás.
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De vidro.
HorrorEm meio ao odor do lixão, dois garotos descobrem algo sobre si mesmos, mas sentem que não devem contar a ninguém.