Desde aquele dia, João não é mais o mesmo com Ailton.
Ambos estão em uma sala de aula, na hora do intervalo, que não é a deles, porque era a mais próxima da cantina, na qual estavam lanchando há poucos minutos atrás. Nunca foi indicado ficar nesses horários dentro de sala, porém a maioria dos garotos da escola não obedecem às regras, assim como eles. Nesse período de espera cotidiano, Ailton sente que faz um bom tempo que não vê a cara rude de João para cima dele, como agora: ela está em falta e surge algo muito mais inusitado. João o olha com uma admiração contida, os dedos firmes na carteira da sala, similar a uma criança pequena a ouvir o patriarca da família contando histórias antigas de quando ele era guerreiro.
— E doeu? — João sussurra.
— Não. — Ailton mente.
Naquele dia, Ailton sentiu uma dor aguda enorme, a pior de toda a sua vida, entretanto durou em pequenos milissegundos. Quando o braço retornou ao normal, ele sentia como se o que tivesse acontecido fosse apenas um sonho e ele havia acabado de acordar de susto. Aqueles sonhos bobos de quando você sente o seu corpo cair sem parar e, do nada, acorda.
Nenhum deles teve a coragem de contar para alguém o acontecimento. Na realidade, desde o fatídico dia, eles se sentem receosos, como se tivessem feito algo errado, como se beijado a irmã de um amigo escondidos, ou descoberto o que a esposa do vizinho rabugento que tanto detestam, ao ponto de jogar ovos podres em seu quintal quando possuíam a oportunidade, faz durante os fins de semana. É uma sensação constante de uma descoberta proibida, um segredo misterioso, irreconhecível pela natureza humana, misturada a uma emoção de origem energética e empolgante. O super-homem caindo dos céus tal qual um meteoro. Ninguém acreditaria neles, diriam que é imaginação de pirralho.
Mas eles sabiam ser real. Não existem dúvidas quando olham o braço de Ailton.
— Você tem certeza? — João pergunta mais outra vez.
— Sim. — de novo, Ailton mente, porém agora não se sente mais tão confiante em mentir por ser a segunda vez que João pergunta.
— Quer tentar de novo?
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De vidro.
HorrorEm meio ao odor do lixão, dois garotos descobrem algo sobre si mesmos, mas sentem que não devem contar a ninguém.