Capítulo 1: "Uma corrida compartilhada"

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A parte mais complicada da viagem sempre era o momento de encostar para pegar seu passageiro. Pelo menos, assim pensava Lopes, chegando para começar mais um percurso, numa noite quente da capital paulista. Ficou menos ansioso quando percebeu o recuo ligeiro, mas suficiente, na pista em frente à Faculdade ou Escola ou o que quer que fosse o prédio bonito de onde sairia sua passageira, a primeira de uma corrida compartilhada. Outros dois ainda viriam depois dela, como o aplicativo já avisava.

Encostou e esperou pelo próximo passo. Quem dessas pessoas é Daniele? foi a primeira pergunta, seguida por: Será que ela vai demorar para entrar no carro? Apostou numa mulher que não tirava os olhos do celular, e que ela demoraria para perceber que sua carona tinha chegado.

A verdadeira Daniele, atrás dessa garota, percebeu logo que já era hora de partir. Não porque ela reconheceu o modelo do carro, já que era péssima nesse tópico, mas porque queria muito ir para casa e tinha decorado a placa do veículo. Levantou-se do encosto onde estava sentada e foi direto para a porta traseira.

— Lopes? — perguntou o rosto que se pendurava para dentro do carro.

— Err... Daniele? — replicou ele, aproveitando a hesitação para uma última conferida no nome que constava no aplicativo. O erro entre Daniele e Daniela poderia custar sua simpatia.

— Isso! — A tréplica já ocorreu com ela entrando e se sentando, atrás do banco do carona.

Lopes a examinou pelo retrovisor, como fazia com quase todos os que tinham o privilégio de viajar no seu HB20 prateado. Não tinha qualquer interesse fora a curiosidade, no caso; ela tinha vários atributos errados para o seu gosto, incluindo um cromossomo. A passageira vestia uma calça azul escura, que parecia não ser jeans na pouca iluminação, e uma blusa leve, com desenhos esparsos de flores. Um par de óculos, pouco chamativo, adornava o rosto bem desenhado, circundado por um cabelo cacheado e cheio. Não teria como perceber que ela usava o mínimo possível de maquiagem, ou que ela não se importava tanto com isso. Completava o look com uma bolsa que não combinava bem com o resto das roupas.

Ele não sabia (mas podia imaginar) que ela também o inspecionava. Daniele via só que ele usava uma calça jeans simples e uma camisa preta tão simples quanto, do seu ponto de vista. Além disso, ela também prestou atenção ao interior do carro. Impecável. Muito limpo; cheiroso, mas sem excessos; balinhas no suporte para copos, junto a um copinho d'água, elementos cada vez mais incomuns. Parecia mesmo o ambiente onde ele passava a maior parte do seu tempo.

— Lopes... — ela disse, baixinho, após os poucos segundos de silêncio. — Nunca vi ninguém colocar o sobrenome para se identificar na Uber. — A sobrancelha direita estava um pouco erguida, revelando sua curiosidade.

Ele sorriu, o sorriso de quem já tinha ouvido a pergunta implícita muito mais do que uma vez na vida.

— Essa é clássica! — A fala era quase automática. — Isso é porque Lopes, acredite se quiser, é meu nome. Nome próprio, primeiro nome. Meus pais deviam gostar muito de algum Lopes, mas, e essa é outra parte boa, nunca me contaram quem era. Então: Lopes Silva, ao seu dispor!

Daniele riu bastante no banco de trás. Ele já estava acostumado. Aprendera há muito a usar seu nome diferente para introduzir uma conversa.

— E você? — ele arriscou. Era sempre melhor viajar conversando do que ouvindo as repetitivas músicas do carro. — Estudando o que até uma hora dessa, mulher?

Daniele captou as nuances e percebeu que não tinha como ele estar dando em cima dela. Fosse esse o caso, ela já cortaria o papo de imediato, sem se preocupar em ser grosseira. Não sendo, ela relaxou ao máximo, esperando aproveitar a breve companhia até sua casa.

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