A viúva e o detetive

9 1 2
                                    

A Sra. Amaral desceu a rua rapidamente com passos leves, amaldiçoando a calçada com buracos que a fazia tropeçar. O sol ainda não tinha desaparecido no horizonte e as ruas já estavam desertas. A razão para tal era simples: todos estavam com medo.
Toda a vila estava assustada, desde a criança mais jovem ao homem mais forte. O medo que o assassino da ponte espalhava era quase mais mortal que os seus crimes.
Esta era a sua segunda morte. A primeira fora o homem bêbedo que dormia na ponte, que apareceu morto aí, com um buraco na cabeça feito com uma pedra afiada. A segunda fora o seu querido marido que tinha sido empurrado da ponte, caindo de cabeça no rio.
A mulher continuou pela rua tentando esconder o seu rosto no vèu negro que usava. Era impróprio para uma mulher andar sozinha na rua, especialmente se tivesse acabado de perder o seu esposo. Mal o funeral tinha terminado, ela ignorara todas as perguntas dos familiares e dos intrometidos, e correra para longe.
Ela precisava de uma ideia que acalmasse os amigos insistentes do seu marido. Eles queriam que o assassino pagasse pelo que tinha feito, mas a Sra. Amaral recusava-se a falar com o novo xerife da cidade que tinha fama de passar a mão nas testemunhas.
A mulher abanou a cabeça como se tentasse afugentar os pensamentos que gritavam alto dentro dela. Uma porta apareceu à sua frente e ela endireitou a sua saia preta antes de lhe bater três vezes.
O detetive Lopes, o forasteiro obcecado por mitos e lendas, abriu a porta e observou a mulher com o seu olhar penetrante.
- Viúva Amaral, o que a traz por estas bandas?
A senhora suspirou ao ouvir “viúva”, não bastava ser chamada ”mulher do presidente”, de agora em diante o seu nome seria viúva.
- Assuntos triviais não são de certeza. Posso entrar?
O detetive nem precisou de assentir pois a mulher já estava dentro do seu escritório em segundos. De alguma forma aquela mulher lembrou-lhe de um furacão. Uma força da natureza incontrolável.
Ele estendeu o braço apontando para uma cadeira vazia à frente da sua secretária. A Sra. Amaral sentou-se como uma dama e esperou que o detetive se sentasse antes de começar a falar.
- Eu preciso que descubra o assassino do meu marido.
O Sr. Lopes fez uma cara de seriedade ao debruçar-se sobre o assunto.
- Não.
- Como não? - Perguntou a mulher estarrecida.
- Não me quero meter nos assuntos do xerife. Simples assim.
A mulher com uma careta tirou um pequeno saco da sua bolsa, que ao cair na secretária fez tintilar o seu conteúdo.
- E agora?
Quando a mulher fixou-se nos olhos do detetive poderia jurar que eles brilharam ao observar a sacola de moedas.
- Acredito que o xerife não se importe que eu o ajude um pouco.
A viúva deu um sorriso satisfeito ao levantar-se e estender-lhe a mão.
- Temos acordo?
O detetive observou a mão sem aliança e apertou-a.
- Claro. Começamos pela sua casa.
Ela assentiu e caminhou para fora do seu escritório, arrepiando-se ao sentir o frio da noite. O detetive saiu atrás dela colocando o seu chapéu de coco.
- Encontramo-nos lá.
Com isto, cada um deles seguiu o seu caminho. A mulher chegou a casa e tirou a roupa nostálgica do funeral, mudando para calças de couro de andar no campo.
Muito impróprio para uma dama.
O som de bater à porta desviou-a dos seus pensamentos e ela apressou-se a abrir a porta para o detetive entrar.
Ele percebeu que a casa era ainda maior por dentro do que por fora. Observou cada divisão à procura de algo fora do comum que pudesse dar uma pista do que poderia ter acontecido. Se alguém queria o presidente morto ou se apenas era uma escolha aleatória do assassino. O detetive também apontou o que observava desde os sapatos malcheirosos com flores roxas nas solas à aliança masculina na mesa de cabeceira.
Lopes olhou para cima de onde estava agachado no chão.
- Lembra-se de alguma coisa invulgar que ele tenha dito? Alguma conversa de negócios estranha e ameaçadora que a senhora tenha ouvido?
- Não. Ele apenas foi ao bar como fazia todos os dias. E toda a gente o adorava, ele era o melhor presidente que Ponte dos Desejos já teve. - A mulher explicou com um sorriso triste.
O detetive guardou o bloco no bolso da sua gabardina castanha e levantou-se.
- Vamos ao lugar do crime. Aqui não há nada que nos ajude.
A mulher balançou a cabeça em concordância e vestiu o casaco, preparando-se para ir para a famosa ponte dos desejos. O detetive apressou-se e tremeu com o frio gelado da noite.
- Quando deu por falta do seu marido?
- Eu não dei. - Ela afirmou com um olhar triste. - Foi o padre que o encontrou no rio com o pescoço partido, ontem perto da hora do jantar. O sangue ainda escorria quando o encontrou.
- Então o assassino tinha que estar por perto naquela altura. O crime tinha sido bastante recente para estar ainda a sangrar. O presidente estava a vir do bar a essa altura. - Disse o detetive olhando para a ponte à sua frente.
A viúva franziu as sobrancelhas.
- Saber isso ajuda em alguma coisa?
- Ajuda a recriar o crime na nossa perspetiva. Ora veja… - O detetive passou para o outro lado da pequena ponte de pedra - O presidente veio do bar, - ele caminhou até meio da ponte - mas parou quando foi abordado por trás pelo assassino, que o empurrou e o seu marido caiu de cabeça para o rio. O assassino correu na direção mais movimentada da vila para se esconder à vista de todos, então foi na mesma direção de onde veio.
O detetive apontou na direção do bar e avançou por esse caminho. Um brilho no meio da calçada fê-lo chegar mais perto e agachar-se. Agarrou na peça de joalharia dourada e colocou-a na palma da sua mão.
Um anel. Não, uma aliança leve e refinada, característica das damas desta vila. Alguma senhora não usava aliança.
Ele deu um sorriso para o chão ao ouvir o som de passos atrás dele.
- A senhora é muito inteligente.
Uma risada leve ouviu-se.
- Eu sei.
A Sra. Amaral levantou a mão atrás da cabeça e bateu na nuca dele fazendo-o desmaiar.
A viúva carregou-o para debaixo da ponte e começou a amarrá-lo numa das margens do rio que dividia a vila. Depois içou uma corda mais grossa à própria ponte e preparou o nó de forca para quando o detetive acordasse.
Apenas mais um sacrifício. A assassina relembrou-se começando a sentir-se mal pelo pobre homem.
O livro que ela tinha encontrado na floresta pesou na sua sacola. O livro continha a crença de que esta ponte encantada ao receber três sacrifícios concedia um desejo. No início a Sra. Amaral achava que se tratava de mentiras, mas depois de ter morto o bêbedo, ela sentiu-se poderosa o suficiente para querer concluir o ritual.
O detetive começou a abrir os olhos e a viúva atreveu-se a acender uma lamparina apesar do amanhecer estar para breve.
- Olá, dorminhoco.
O homem ainda estava confuso mas deixou uma palavra escapar-lhe dos lábios.
- Porquê?
A mulher não conseguia recusar o último desejo do próximo defunto, então contou tudo: sobre encontrar o livro na floresta, sentir-se inferior por ser mulher, a morte do bêbedo que tocara no seu corpo e como ela se defendera com a pedra no momento em que ele a forçara a beijá-lo, sobre a forma como se sentiu poderosa e ao mesmo tempo enojada com ela própria.
- Descobriste que o teu marido andava a trair-te. Por isso é que ele foi a segunda morte. - Percebeu o detetive. - Vocês discutiram na ponte depois de o teres seguido até à casa da padeira, e empurraste-o.
Ela observou-o surpreendida.
- Como descobriu?
- A aliança dele tinha pó, ele já não a usava há algum tempo. Os sapatos dele estavam todos com estrume, o que me disse que ele frequentava uma quinta. Mas as flores violetas apenas existem nos jardins da padeira Maria, conhecida pelos seus trabalhos nada modestos. Depois vi que as tuas botas também tinham flores da mesma cor.
Ela deu uma risada.
- Muito inteligente.
O detetive aceitou o elogio sabendo da sua morte iminente.
- E a senhora não tanto. - Uma voz grossa soou.
O detetive apertou os olhos para a lamparina que tinha surgido. Um homem estava atrás da luz incandescente. O xerife surgiu com um sorriso, apontando a sua caçadeira à viúva.
- Acabou a diversão.
A assassina arregalou os olhos.
- Como?
- Um palpite certo. - O detetive afirmou encolhendo os ombros, relembrando o olhar espantado do xerife ao dizer-lhe que ele sabia quem era o assassino, minutos antes de ir procurar pistas na casa do presidente.
A viúva começou a gritar, atraindo a atenção das pessoas que se levantavam ao nascer do dia. O xerife atou as suas mãos atrás das costas e atirou-a por cima do ombro carregando-a para uma cela, que seria a casa da viúva durante bastante tempo, até ela ser condenada à morte na forca na própria ponte.
- Obrigada pela ajuda. - Disse o xerife empurrando as pessoas curiosas que os seguiram para a prisão da vila.
O detetive assentiu e observou o sol que nascia agarrando no livro das bruxarias, que lhe era tão familiar.
Ele abriu na página do terceiro sacrifício e sorriu ao ver uma mulher enforcada na ponte. Exatamente o que aconteceria com a Sra. Amaral.
O detetive guardou o livro na sua gabardina e sussurrou para que o vento levasse as suas palavras.
- Finalmente vou ter o meu desejo concretizado.

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Apr 18, 2022 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

Ponte dos DesejosOnde histórias criam vida. Descubra agora