Inferno de fazenda

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O rosto fechado da criança que recém chegava da escola mostrava um extremo descontentamento. Os olhos castanhos encaravam com desprezo o próprio pai bêbado, que dormia sobre a garrafa de cerveja que ainda estava derramando. Idiota. As mãos coçavam para esmurrar aquele velho maldito, mas não fez nada. Apenas seguiu para seu quarto, com o cachorro logo atrás abanando o rabo alegre com a chegada do dono.

"Quarto do Stan, não entre sem bater"

Dizia a folha pregada na porta do quarto do menino, cuja uma das pontas estava caída. Sem muita vontade ele ficou na ponta dos pés e arrumou a folha. O que foi inútil, pois logo depois ela tornou a cair. Suspirou molesto, abriu a porta e o cachorro foi o primeiro a entrar, já pulando em cima da cama com a barriga voltada para cima, esfregando a cabeça ansioso, esperando por um carinho.

Stan jogou a mochila no canto da mesa, e retirou de lá apenas um caderno gasto, que já tinha a capa amassada com um enorme rasgo onde antes havia um desenho de algum super herói e o velho estojo esburacado. Viu o cachorro na cama e seu semblante amargurado deu lugar a um sorriso mínimo.

-Quem é meu meninão? Quem é? Quem é, Spike?- perguntou com ânimo pífio, mas suficiente para demonstrar ao animal que o amava. Esfregou as mãos calejadas na barriga do cão que estava adorando o mimo- É você, Spike? É você! Você, é sim!- abraçou o bichinho, que em retribuição lambeu seu rosto. Desde que se mudou, o garoto que já era quieto, adotou uma postura ainda mais inerte. Mal saía do quarto, quase não falava e no rosto tinha sempre um semblante que misturava raiva e melancólia. Estava longe de tudo que amava e tudo que ele sentia era um vazio angustiante e uma extrema solidão. Spike era o único que o lembrava de que não estava sozinho.

Quando o cachorro se cansou, deitou a cabeça no colo do menino que, com cuidado, tirou-o do lugar e deixou que deitasse no travesseiro. Folheou o caderno a procura da música que escrevia, já tinha a melodia na cabeça. Tirou da gaveta o gravador e do pedestal, o violão. Testou algumas notas que se encaixariam melhor com a melodia e a letra, anotando sobre a composição o tom que usaria, os andamento e os acordes.

Aquilo já tinha virado um hábito, punha para fora seu ressentimento em relação ao mundo em poemas, que mais tarde se tornavam música. Poucas foram as vezes que compôs algo de positivo e dessas vezes todas as composições foram dedicadas a Wendy, a garota dos grandes olhos de inseto e mente afiada, que tinha seu coração nas mãos. No entanto, mesmo quando escrevia algo bom, seu quê pessimista ainda estava lá.

Leu e releu milhares de vezes sua composição, testou acordes até achar o tom certo e ensaiou antes de ligar o gravador. Dedilhou o violão em lá menor, completando dois ciclos de quinta. Mudou o tom pouco a pouco, mudando de quintas para terceiras e de terceiras para oitavas; quando o tom voltou ao original sua voz foi crescendo à medida que o som do instrumento se fazia mais forte.

-Stan!- A voz arrastada de seu pai, Randy, atrapalhou sua gravação. Porra, pai.

Stan levantou-se irritado, deixando o violão no chão sobre o caderno. Foi até a sala murmurando xingamentos. O pai ainda estava estirado no sofá, mas agora tragava um cigarro de maconha.

- Stan, pega mais uma cerveja por papai. - pediu. Stan ficou furioso. Ele realmente o atrapalhou por algo tão idiota?

- CACETE, PAI! VOCÊ JÁ TÁ BÊBADO PRA CARALHO! CHEGA, PORRA! QUE MERDA!

- EU SOU SEU PAI! NADA DE FALAR ASSIM, MOCINHO! - ralhou, mas estava tão embriagado que não havia o mínimo rastro de autoridade em sua voz, na verdade só soava patética.

- Ah, vai se fuder. - voltou para o quarto emburrado. Stan sempre achou seu pai idiota, mas ao menos antes ele agia mais como um pai, mas agora a família era nada mais que um negócio e todos eram empregados, com a diferença de que não podiam ser demitidos ou se demitirem. Spike o encarava com aqueles olhinhos brilhantes, que pareciam lê-lo por dentro, era até um pouco perturbador.

O Inferno Cheira A ErvaOnde histórias criam vida. Descubra agora