Parte 30

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- Tem certeza de que estamos no lugar certo? - Magnus perguntou, em um sussurro.

O tom baixo da voz era um tanto inútil. O guerreiro seguia a trilha com um caminhar despreocupado, sua armadura tilintando a cada passo, alertando quaisquer ouvidos atentos na proximidade.

Lórien lançou um sorriso ao amigo.

- O quê? Parece um lugar errado?

Ao redor, nada se via além de vegetação densa. A trilha serpenteava em meio a mata e logo, após uma curva, perdia-se de vista. Magnus olhou de um lado para o outro, depois para o céu, à procura da exata posição do sol.

- Não estamos tão longe assim da cidade - disse.

- Não?! - Dh'òrain retorceu os lábios em uma careta, como se verdadeiramente ofendida com aquele comentário - Mas estamos andando há horas!

Magnus virou o rosto para cima outra vez, cerrando os olhos, recalculando.

- Acho que estamos andando em círculos.

- Quase - Lórien confirmou.

Dh'òrain parou de andar e pôs as mãos na cintura.

- Amada, é de propósito isso? Que eu tenha reparado, não tem alma viva seguindo a gente. Nós fomos teletransportados ontem! Ninguém sabe onde estamos, não tem quem despistar - ela ajeitou a bota de forma melodramática, como se o sapato lhe furasse por dentro - Para que essa sofrência toda de ficar andando sem necessidade?

A elfa arqueou as sobrancelhas e ergueu o braço em um movimento lento, apontando em uma direção aleatória da mata. Tudo o que podia se ver eram arbustos altos, trepadeiras caindo das árvores e uma gigantesca teia de aranha barrando a passagem.

- É o caminho da trilha. Se quiser chegar mais rápido, é só seguir reto por aqui.

Diante do sorriso desdenhoso de Lórien, Dh'òrain sacou uma adaga da bainha presa ao cinto e deu um passo firme e decidido, pronta para desbravar aquela selva a abrir o próprio caminho. Seu primeiro desafio foi a teia de aranha, bem mais difícil de romper que o esperado. Após considerável esforço, Dh'òrain avançou a incrível distância de 20 centímetros para dentro da mata, e desistiu. Voltou para o espaço aberto da trilha erguendo a mão aberta na direção de Lórien, calando a piadinha que estava certa de vir.

O sofrimento da violinista não continuou por muito tempo. Algumas outras serpenteadas e curvas e logo o trio encontrou uma cabana de madeira velha, coberta de musgo, exalando cheiro de mofo. Um canto do telhado havia ruído e o restante estava prestes a seguir o mesmo destino. A aparência de completo abandono levou Magnus a repetir sua pergunta:

- Tem mesmo certeza de que estamos no lugar certo?

Lórien subiu o degrau crepitante da reminiscência de um deque de madeira, que circulava a cabana. Ela pôs as mãos na cintura, observou o lugar com um brilho carinhoso nos olhos e afirmou:

- Bem aqui.

- Tem alguma palavra mágica, encantamento, pó de fada que vai transformar esse negócio decrépito em uma fortaleza? - Dh'òrain quis saber. Juntou-se à amiga, olhando para os lados, tentando sentir qualquer tipo de energia mágica sendo emanada pelos arredores, sem encontrar nada.

- Não. É isso aqui mesmo.

Magnus abriu a boca para emitir um novo protesto, mas calou-se. A terra batida frente à cabana chamou-lhe a atenção. Diferentemente da trilha que haviam percorrido, ali o chão mostrava rastros da passagem de muitas pessoas. Dezenas de pegadas diferentes surgindo do nada e marcando poucos passos até o deque de madeira podre.

Lórien escancarou a porta e apontou para um alçapão, bem ao centro da cabana. A abertura tinha também aparência de madeira apodrecida, mas não era tão simples de abrir. A elfa se agachou e começou a traçar desenhos no chão.

- Tem uma senha - explicou.

Traçado completo, a portinha se elevou alguns centímetros, e os sons do bosque foram substituídos pelo falatório e tilintar de metal. Lórien sorriu.

- Eles foram rápidos.

O trio havia demorado três dias para alcançar aquele local, partiram logo na manhã seguinte da batalha. Julgando pela quantidades de vozes que subiam pela abertura no chão, muitos tinham feito o mesmo.

Em um raro momento de silêncio de Magnus e Dh'òrain, desceram pela escada apertada até os túneis de pedra escondidos naquele subsolo. O espaço era amplo, comprido e labirintico, apinhado de barracas, barris, armas, escuros e guerreiros das mais variadas raças. Caminharam por entre grupos discutindo em diversos dialetos até um vão, que Lórien sabia ser central daquela estrutura. Lá, debruçado em um mapa, estava Anluath.

O elfo sorriu ao vê-los.

- Agora sim, meu batalhão está completo!

***

A balbúrdia por entre os corredores estava ainda maior. À luz bruxuleante de velas e tochas, planejamentos e ordens haviam sido substituídos por canecos de vinho dos haflins e canções. A música contava de guerras vencidas, atos heróicos e paz. Muitos sequer iriam dormir, apesar da longa marcha com início marcado para antes mesmo do nascer do sol. Ansiosos, preferiam se exaurir em melodias alegres e se anestesiar com o álcool. Era a melhor forma de ignorar a lembrança das criaturas aladas de olhos viítreos, seus raios de luz capazes de desintegrar almas.

Anluath assistiu sorrindo, de braços cruzados, enquanto Dh'òrain dançava em meio a um roda, movimentos rápidos do arco, tirando uma melodia enérgica do violino. Alguma arranjo havia sido feito, que garantia à barda algumas taças do melhor vinho da noite. Anluath não prestou atenção aos detalhes do combinado, apenas agradecia em silêncio ao esforço de Dh'òrain em manter o ânimo dos guerreiros em alta, criar o ambiente alegre, sensação de vitória com seus acordes encorajadores. Caso o agradecimento fosse posto em voz alta, a violinista negaria tal esforço, garantindo que seu único objetivo naquela noite era o vinho. Em verdade, com Dh'òrain, era difícil discernir o que era sua vontade real e o que era mera consequência agradável. O resultado, ao menos, agradava a todos - inclusive os que ofereciam vinho e acompanhavam com palmas e rodopios o ritmo do instrumento.

Em meio a sorrisos, uma frase bastante verdadeira destoou da aura de fingimento, cortando o véu de falsa tranquilidade. Apenas Anluath escutou:

- Você está preocupado.

Aquelas palavras soavam quase proibidas em véspera de batalha. Lórien continuou.

- Não tem nada a ver com nosso desafio de amanhã.

O lago. A prisão mágica contendo Raquel. Um símbolo de esperança para recuperar um reino perdido.

Anluath deixou o receio transparecer no rosto por um breve momento. Percebendo que Dh'òrain havia feito uma pausa em sua música, acenou para que se juntasse a ele, Lórien e Magnus.

Percorreram o curto caminho pelos túneis de volta ao vão central. Lá, os líderes que ainda restavam degustavam de vinho de forma um pouco mais contida, ainda com os semblantes intensos das horas de planejamento. Anluath parou ainda a uma distância e apontou, bem no centro da mesa, para Ítalo.

- Eu vi Estevão morrer - Anluath contou o que seus amigos já sabiam. Vi um raio de luz entrar na sala e desintegrar metade do ambiente. Se a porta atrás de mim não estivesse aberta, se eu não tivesse para onde me jogar, teria sido desintegrado junto.

Ele olhou de esguelha para a mesa outra vez.

- Ítalo estava ao lado de Estevão. Eu não consigo explicar como continua vivo.

Silêncio seguiu-se. Os outros, assim como o elfo, não sabiam o que interpretar da excepcional resistência do meio elfo de orelhas mutiladas à raios de luz desintegradores de corpos.


Livro 2 - A Sombra, a Música e a Espada [completo]Onde histórias criam vida. Descubra agora