As lágrimas amargas de Celia St. James
Celia tinha sentimentos distintos quando pensava no cinema. Amava atuar, e amava assistir aos filmes, mas cada amor parecia existir em partes diferentes de seu corpo. Atuar exigia imaginação e entrega, quando pensava neste aspecto do cinema logo imaginava as luzes quentes dos estúdios apontadas para ela, seu rosto coberto de pó para não brilhar, seus gestos contidos mas calculados. Sentia sua atuação quando conseguia sincronizar os batimentos do próprio coração com os da personagem, quando as lágrimas da personagem desciam por seus olhos, quando sua voz saía rouca para dar cabo ao sentimento de outro ser que imaginava. O cinema que fazia morava no coração. No entanto, quando sentava-se no escuro do cinema, distante da maquiagem e das luzes quentes, vestidos luxuosos dando lugar à sua companheira calça jeans, sentia outra coisa. O cinema era outro lugar. Fazer cinema para ela era aprender a respirar sendo outra pessoa, mas acomodar-se na poltrona da sala fria para assistir algo projetado na tela era, sempre, um deleite tranquilo. Como quando olhava pela janela e via a vida de outras pessoas, distante e sem envolvimento, no máximo uma empatia. Mas não era ela, não era seu corpo que sentia, não era seu coração que acelerava. As lágrimas que caíam não eram suas. Era quase como se a realidade se apresentasse para ela e Celia ficasse invisível, podendo tocar em tudo, como uma casa de bonecas. O cinema que assistia morava na ponta dos dedos.
Conforme envelhecia, Celia conseguia perceber cada vez mais claramente essa distinção e, talvez por isso, se entendesse mais fascinada por filmes em que pouco se envolvia emocionalmente, mais atenta à estética e à inovação. Mais interessada no 'fazer' dos filmes, pensando sempre em como devia ser diferente para aquelas atrizes e atores com propostas tão diferentes de envolvimento e atuação. Mas isso caminhava lentamente em Hollywood. Bem por isso, foi se mergulhando lentamente nos filmes europeus que chegavam até Los Angeles, devorava todas as listas de pré-selecionados ao Oscar de língua-estrangeira, e distanciava cada vez mais suas percepções do cinema. Um dia no estúdio ouviu dizerem que um rolo tinha acabado de chegar da Itália e ela pode, finalmente, ver Alemanha, ano zero — o que a fez correr atrás do diretor Roberto Rossellini no Festival de Veneza em 1959, sem sucesso, infelizmente. Já os anos 60 passaram leves, descobrindo aos poucos a nouvelle vague francesa, fascinada por Godard e Truffaut — sem a menor vontade de ir atrás destes dois em qualquer festival. De qualquer maneira, foi um hábito cultivado ao longo dos anos, o mercado dos EUA recebendo mais e mais latas de filmes estrangeiros. Celia já tinha um cinema preferido, uma sessão preferida, uma poltrona preferida. Esse hábito permaneceu por anos, com ou sem Evelyn, com ou sem John. De certa forma, era muito tranquilo ir até lá com a certeza de que descansaria a própria cabeça, absorta pela luz e pelos cortes de cena, sem envolvimento, sem o romance de Hollywood e, principalmente, sem os astros que encontrava na esquina, no shopping, na festa, na cama. Um mundo longe da vida dela. Mas, quando vivia com Evelyn, John e Harry, sempre era tão bom que era fácil trocar um cinema legendado solitário por um coquetel a quatro. Logo depois, a questão da gravidez de Evelyn mexeram em coisas profundas dentro de si, e preferia ocupar seu tempo fingindo ser outras pessoas, lendo milhões de roteiros e atuando em mais um bilhão de filmes. Depois, Connor, que era ao mesmo tempo uma delícia e um suplício, uma menina com o rostinho de Evelyn, um eterno e físico lembrete do que ela jamais poderia proporcionar. Assim, os filmes da primeira metade da década de 70 passaram batido, ocupada e desesperada para sair de si mesma sempre que possível.
Quando deixou Evelyn ir embora de vez, Celia estava determinada a nunca mais pôr os olhos na ex-namorada ou ex-esposa ou ex-qualquer-coisa, disposta a ficar em seu tempo livre o mais distante possível de Hollywood e seus nomes e seus produtores e seus estúdios. Lembrou-se finalmente de seu cinema preferido, de sua poltrona confortável, e decidiu ir assistir um filme numa língua que não entendia para deixar sua mente ter o mínimo de paz. Era 1978, fazia muito calor, e o filme que passava era alemão: O medo devora a alma, de um diretor chamado Fassbinder. O panfleto do cinema dizia que o filme era de 1974, e Celia tentou não se lembrar o que era que tinha acontecido em 1974 para que ela não se atentasse àquele lançamento. Pelo que conversou com a moça da bilheteria, estavam passando aquele filme ali naquela sessão porque um novo filme do diretor iria ser lançado, e o dono do cinema adorava aquele diretor e tinha acabado por manter a fita consigo depois da distribuição. Após a sessão, uma hora e meia depois, Celia saiu fascinada, contente por ter ficado sem pensar em Evelyn por aquele tempo, encantada pelo cinema daquele diretor, desejando repetir aquela sensação de afastamento novamente. Descobriu na bilheteria a data do lançamento do outro filme e, enquanto comprava uma garrafa de água na bomboniere, ouviu uma moça um pouco mais velha que ela dizer que, naquela noite, faria uma sessão especial para conhecidos de um outro filme incrível daquele diretor, lançado anos antes. Delicadamente, Celia andou até a dupla de pessoas, decidida a ser notada, e sorriu leve quando os olhos da moça se iluminaram ao reconhecê-la. Celia foi calma e, depois de oferecer os autógrafos, perguntou sobre a sessão.
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As lágrimas amargas de Celia St. James
FanfictionApós o término definitivo com Evelyn, Celia retoma seu hábito de ir ao cinema sozinha na esperança de esquecer, por algumas horas, da dor dilacerante que a envolve. No entanto, o filme que assiste toca em feridas muito recentes no seu coração.