Lembranças mal vindas

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Quando Rafaela e Clarice chegam ao nosso encontro bimestral ‒ que na verdade só tem ocorrido uma ou duas vezes ao ano nos últimos tempos, devido às rotinas loucas de cada uma de nós, no entanto esse ano voltamos a nos encontrar com mais frequência ‒, eu respiro aliviada. Tenho muitos colegas de trabalho, é claro, há bastante rotatividade de profissionais nos hospitais do estado, mas nós três temos um vínculo especial desde o início da faculdade quando ainda éramos três garotinhas inocentes sonhando com o status de enfermeira, e elas são as únicas pessoas em quem eu confio para contar determinadas coisas. Coisas como, por exemplo, a chegada de um determinado convite.

― Amiga, como você está? ― Rafaela, sempre tão carinhosa, me abraça apertado com seus braços magrinhos que não demonstram em nada a força que têm.

― Bem, muito bem! ― respondo com uma convicção fingida. ― Oi, Cla! ― Recebo o abraço carinhoso de Clarice e sinto cheiro de colônia de bebê na sua roupa, o que me faz automaticamente abrir um sorriso.

Nos sentamos na maravilhosa poltrona do Haagen-Daz e solicitamos nosso especial favorito, o combo de fondue de chocolate com sorvete, frutas e biscoitos. Enquanto a garçonete se afasta após anotar nosso pedido, nós trocamos caixinhas de chocolate como de costume e começamos a nos atualizar sobre a vida uma da outra. Clarice agora está pensando em se casar de véu, grinalda e tudo o que manda o figurino, já que Murilo vai começar a frequentar uma creche em período integral e ela pode voltar a trabalhar regularmente.

Clarice é a única de nós que já tem uma família para cuidar. Eu admiro a coragem dela por ter conciliado a maternidade com a pós-graduação, que finalizou há pouco tempo, ainda que a gravidez do Murilo não tenha sido planejada. No entanto, ela se mostrou uma mãe muito capaz até então e seu filho é uma gracinha, daquele tipo de criança que encanta todo mundo com quem tem contato, mesmo as pessoas consideradas mais duronas como eu. Rafa, assim como eu, ainda está dando prioridade à vida profissional, enquanto não chega nossa vez de entrar para o time das mães de família. Honestamente, eu nem sei se quero isso, embora seja louca por crianças, mas é um assunto delicado e ao mesmo tempo desconfortável, que deixo para outra hora.

― Muito bem, Cla, chega de viver em pecado ― digo com um tom de voz saliente e passo a língua pelos meus lábios, provocando-a, e caímos na risada ao ver uma Clarice mais vermelha que um tomate. ― E você, Rafa, como anda a saga com o Tinder? ― pergunto realmente curiosa.

Da última vez que nos encontramos, Rafaela nos contou que tinha passado por uma série bizarra de encontros com caras que conheceu através do aplicativo. Eu não julgo, até tentei usar o Tinder certa vez, mas não tenho paciência para os tipinhos que me apareceram como sugestão de match ‒ acho que tenho uma certa tendência genética a atrair seres casados ou comprometidos, mas me envolver com homens proibidos está totalmente fora de questão. Mulheres também. E olha que eu não sou considerada uma pessoa antiquada, mas de certos valores eu não abro mão jamais.

― Dei adeus ao Tinder. ― Rafaela abre um imenso sorriso ao dizer isso. ― Conheci uma pessoa de outra forma e... ― Faz uma pausa, mantendo o suspense. ― Estamos namorando! ― Ela ergue a mão direita e nos mostra sua aliança de compromisso feita de prata reluzente.

Imediatamente Clarice e eu soltamos um grito, nos contendo em seguida ao ver que estamos chamando a atenção das pessoas ao redor. Nos abraçamos e comemoramos, afinal de contas, Rafa até o momento tinha uma vida amorosa mais atribulada que a minha e isso é algo a se considerar.

Nosso pedido chega e nos deliciamos com chocolate e sorvete por um tempo, enquanto Rafa nos conta sobre Gustavo, seu namorado, que parece ser bem-humorado, um pouco cínico e com um dom para as artes culinárias. Tipo, o cara é o sonho de consumo de qualquer mulher com juízo nos dias atuais. Estou quase perguntando se ele tem um primo bem apessoado quando Clarice me encara e sei que sou a bola da vez na conversa.

A vez de Suzane - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora