Capítulo único.

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  Sangre a aberração, literalmente. O gosto ferroso que a língua degustava, mandava essa informação ao cérebro. Seria uma piada difícil de entender ou apenas não tinha mais disposição para pensar sobre? Recusava-se a cair na armadilha outra vez. Era sempre assim. A mente trabalhava sem descanso e quando se dava conta, o estrago já havia sido feito. Porém, por que seria diferente agora? Olhou o próprio reflexo no espelho sujo, ignorando o cheiro que queimava os pêlos do nariz e as baratas passeando serenas nos cantos das paredes pichadas. Detalhes. Coisas que não dava a mínima. Não era melhor que nada ali. Pelo contrário, seu estado se mostrava deplorável, no mínimo. Não sabia dizer quando tudo saiu do controle, quando se perdeu de um jeito irreversível. Escolhas e consequências. Apostara alto e teria de pagar o preço. Riu, vendo os dentes manchados de vermelho. Um belo talho no lábio inferior, a marca de que ainda vivia. Se sentia feliz por isso? Pela constatação de mais um dia? Bufou, resignado em estar “filosofando”. Adiantara arrumar briga com desconhecidos, trocar socos e pontapés desengonçados? Permanecia pensando e pensando e pensando... A consciência nunca desligando e o infernizando em todos os momentos. Até nos sonhos, tudo permeava em devaneios, ideias, pequenas nuvens densas, a névoa que embaçava e nublava as respostas. Por Deus! Deveria estar curtindo como sempre fizera, aproveitando a vida, o dinheiro que ganhava. Muitos o invejavam, queriam ter sua vida. Por que então, sentia-se tão cheio do vazio? Do tédio, do amargor? Comia nos melhores restaurantes, degustava as melhores e mais caras bebidas. Tinha carros variados e garotas a disposição. Por que então, trocaria tudo por paz de espírito e uma noite de sono decente? Havia se tornado o clichê mais antigo. Quando se tem o mundo, nada lhe interessa. Seria essa a sina do ser humano? Percorrer metas e quando ou se conseguir alcançá-las, perceber que era o caminho, não o final. De nada adiantava o prêmio, a exaltação. Era o propósito que causava a adrenalina, a paixão, a gana. Deveria ter sido por isso que Kurt havia se matado. Também tinha a vida de merda, a infância de bosta e as drogas. No entanto, fora apenas quando teve tudo, quando em teoria não lhe faltava nada, que as coisas se fizeram insustentáveis. Seria cômico se não fosse trágico. Poderia Cobain ter tido esta reflexão antes do fatídico ato? Estaria perto de desistir? Esse era o perigo de cair no vale dos pensamentos. Demônio traiçoeiro. Queria cheirar. Péssima vontade. O pó só somando para o turbilhão de informações e raciocínios. Injetar parecia uma opção fácil, contudo, limpar a mente era diferente de virar uma ameba por algumas horas. Fodida. Assim poderia resumir-se sua existência. Cuspiu o sangue com saliva na pia, procurando pelo maço de cigarros e acendendo um. Viu a face desaparecer ante a fumaça, sorrindo fraco por conta do corte recente. Gosto ferroso de novo e antes de tudo repetir-se, decidiu que voltaria a companhia dos recém conhecidos, fingindo ser o que não era há tempos. Nem sabia mais porque mantinha o papel, ponderando ser prático e cômodo, uma máscara que facilitava sustentar.

  - Muito bem. Volte lá e finja que está bêbado, deixem que  o vejam tropeçar, falar coisas desconexas. Leve a mulher mais bonita pra casa e depois não lembre do nome. – Entoou como um mantra, sabendo que ficava cada vez mais difícil acreditar.

  Sangre a aberração.

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