Capítulo Único

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    Era uma tardezinha normal do mêis de maio, nessa cidadezinha esquecida no interior desse nosso país. As chuvas da temporada já tinham acabado e o que tinha sobrado pra trás eram dias de secura, com manhãs frias e tardes dignas da casa do capiroto. A poeira começava a se juntar nos lugares; nos móveis, nos cantos das janelas, nas folhas das plantas. E de pouco em pouco o ambiente que antes era verdin à minha volta dava lugar a um vermelhão de folhas secas e do pó da terra. 

    Eram bem comuns, ali, umas histórias estranhas de acontecimentos mágicos. Comum de um jeito que quase todo mundo conhecia alguém, que conhecia outro alguém, que conhecia alguém envolvido em alguma delas. Bichos sobrenaturais vagavam de noite, lobisomens na quaresma, brilhos zanzando pelas estradas escuras, fogo vivo nos canaviais das fazendas… Existia um respeito geral por cada um desses causos, por cada uma das entidades, mesmo que fossem contos passados de vô pra pai, de pai pra filho, sem ninguém saber de onde vinha o começo. Nunca tínhamos presenciado esses acontecimentos de uma maneira que se virassem fatos consumados. Nunca, nunquinha, um trem parecido tinha surgido diante dos olhos de mais de uma ou duas pessoas, sempre nas moitas. Nunca. 

    Até a tarde daquele mêis de maio. 

    Os fim de tarde, quando as sombras começavam a se esticar ao ponto de refrescar as ruas, vinha sempre  com um sentimento ruim pra mim. À medida que o sol se punha, principalmente naquela época do ano em que as nuvens rareavam e davam vista ampla pra gente assistir, batia ne mim um sentimento de tristeza. A morte do dia era mais do que uma coisa natural e sem remédio; tinha um gosto ruim de perda. Eu vislumbrava o céu laranja, meio roxo e um tanto rosa tamém, com o sol vermelho na beira do horizonte, e essa sensação me perseguia tudo quanto é dia. Em tudo quanto é anoitecer. Até que a noite chegava por inteira e as lúiz da cidade eram acesas. E então, como num passe de mágica, eu me esquecia do ocorrido. 

    Mais, naquele fim de tarde quando o sol se pôis, tinha algo diferente no ar. Demorei uns minutos pra perceber o que era exatamente, meus instintos só sentiram que as coisas fugiam da normalidade. Foi quando, num supetão, o entendimento me veio na cabeça: uai, as lúiz da cidade não estavam acesas. Era isso.  

    Só que a minha tevê ligada mostrava que tinha sim energia, mais mesmo assim eu apertei o interruptor pra ter certeza, feito besta. Não acendeu. Então eu caminhei até a porta da rua e, estudando as casas dos vizinhos, dava pra notar que nenhuma outra lâmpada tava acesa. Não demorou muito pra que outros vizinhos saíssem nas suas portas, tão confusos quanto eu. 

    A lúiz do sol desaparecia por inteiro no canto do mundo, e meus olhos começavam a se acostumar com a escuridão, quando é fé avistei uma pequena lúiz vagalumeando, vindo em minha direção. Era Dona Nina, uma véia já caduca com seus oitenta anos, caminhando sobre os bloquetes feito uma assombração. Sem muita pressa, ela vinha segurando uma vela nas mãos; dava pra ver a cara séria dela, alumiada pela chama. Cara de quem tava tremendamente abatida. Passou por mim em silêncio e continuou, como se tivesse numa procissão. Parou só quando eu chamei ela, querendo saber que bicho tinha mordido ela. 

    "Não sente?", ela falou, com aquelas rugas na testa que eu nunca mais ia esquecer. "Ele se foi", falou. 

    A frase vagou na minha cabeça sem rumo por alguns instantes. Fiquei só assistindo a véia caminhar pra longe. Foi só quando vi mais pessoas — os mais idosos —, seguindo o mesmo caminho, que eu entendi por inteiro a situação. Me subiu um arrepio pelas minhas pernas na mesma hora, serpenteando pelas minhas juntas. Quando vi, tinha começado a caminhar tamém na mesma direção. 

    No fim das contas, meus vizinhos, e os vizinhos dos vizinhos, tamém chegaram na mesma conclusão. Quando parei pra notar, tava todo mundo caminhando, seguindo a fila de gente que só fazia aumentar a cada metro. Viramo esquina, descemo ladeira, cortamo praça, e o grupo de pessoas foi crescendo. Sabe quando um corgo se junta com outro, e depois outro, pra no fim desaguar no mar? Tudo num completo silêncio. Se ouvia, quando muito, uns ruídos e o barulho dos passos. Os mais velhos seguravam velas, alguns tinham tirado das gavetas as lamparinas de querosene. Uns choravam, mais sem abrir um berreiro, enquanto a gente, os mais novos, seguia meio confuso, apesar de que naquele momento a gente já sabia do que se tratava. Além das velas não tinha nenhum outro tipo de lúiz; nem postes, nem lâmpadas das casas, nem lanternas. Nada tava funcionando.

    Depois de uns quinze minutos, desaguamos na rua desejada. A certeza de que era ali o lugar não era só pela casinha carcomida mais a frente, com as janelas abertas e as lúiz acesas — as únicas acesas em toda a cidade. Era tamém pela trenheira esquisita que rodeava ela. As lúiz dos postes piscavam como fogos de São João, sem ritmo e nem ordem. Apesar da bagunça, parecia que tava acontecendo entre elas uma conversa. Piscavam, como setas apontando um rumo; anunciando uma notícia. Hoje tenho certeza que foi a notícia mais importante daquele ano. 

    Seu Lúcio, o véio que desde muito tempo costumava acender as lúiz da cidade, tinha morrido. As suas companheiras de vida lamentavam, choravam da forma que podiam. Choravam, porque jamais encontrariam um companheiro tão fiel, que nunca esquecia do seu trabalho e que cumpriu ele sem faltar nenhum dia. Não tinha doença, nem cansaço, muito menos ressaca de domingo que tirasse dele o compromisso. As lúiz sempre se acendiam no fim da tarde. Anos e anos de devoção que se encerravam ali, diante dos meus olhos ainda jovens. 

    Dona Nina puxou uma oração pra alma do amigo, e só então as lúiz se apaziguaram. Foram aquietando o pisca-pisca e se apagaram por completo, como as esposas que finalmente recebem amparo num velório. A população inteira tava ali. Centenas de vozes recitando os versos das preces, dos pais-nossos e das ave-marias. Era um agradecimento dos anos de serviço e contribuição. 

    Naquela noite, ainda diante da casa de Seu Lúcio, olhei pro céu escuro. E já não me surpreendeu quando vi uma nova estrela surgindo mais brilhosa que as outras. Era mais do que merecido que ele alumiasse o céu tamém. 

    Me lembro daquela noite tudo quanto é dia. Todos os dias quando o sol se põe, num céu laranja, roxo e rosa, com um sol vermelhão no fim do horizonte. Me lembro sempre que a noite cai e a sensação de perda volta a soprar na minha nuca. Me lembro sempre quando vou acender as lúiz da cidade, sabendo que um dia será a minha veiz. 

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⏰ Última atualização: Jun 26, 2022 ⏰

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