PARTE 1: CARA

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Poderia ser uma linda manhã se não fosse o que vou lhe contar agora. Poderia ser um dia normal de rezas na aurora, de dejejum frugal no solstício e de escrita no crepúsculo. Poderia... Mas o Rei Rubertu decidira que não.

Pelo o que fiquei sabendo de Dona Benta, o abençoado Rei Rubertu saltitava pelas ruas de Coimbroulas (sem estar a par daqueles que o queriam morto), meio que dançando, meio que performando. Parecia uma jovem bailarina sob os raios do sol, pulando de pernas abertas, de olhos fechados, gracioso, incorruptível de seu ato (mesmo que um tridente aparecesse no meio do caminho). Depois de um tempo, ninguém da cidade mais o viu.

Fui eu quem o encontrou por último, nas bordas de Coimbroulas. Eu descia pelos meandros de terra carregando a demanda cabida a mim, naquele dia: as flores abençoadas para os maestros já com Deus. Era para eu as ter levado para o cemitério, nonde os demais maestros me aguardavam para os ritos. Eu deveria ter me encaminhado para lá, feito as rezas matinais (as que citei) — era o que deveria ter acontecido.

Dai-me paciência, Senhor.

Quando eu vi a criatura abençoada saltando de pontinha do pé em pontinha do pé, eu não percebi de quem se tratava a princípio. Eu estava abestalhado, acompanhando com a cabeça as piruetas e pulinhos. (Por um segundo, achei que o circo tinha voltado.) Mas eu vi a corou e arfei...

— Verdoso! — disse Rubertu em um tom caloroso, sem perceber que a pessoa para a qual falava mirava-lhe uma aversão repentina.

Eis que foi aí que me deu um branco repentino e deixei as flores caírem, esqueci de minha demanda e dos ritos. Um desastre!

— Venha comigo para o rio, Verdoso! Venha! Vamos!

— Não, não, não, não... — O medo me tomou, só de pensar em mais uma desventura iniciada por ele... isso me dava arrepios, como milhares de baratinhas andando em meu corpo (exatamente como me lembro numa vez em que caí no sono na despensa do reino).

Ele era o rei. Por mais que eu negasse, claro que acabaria indo...

Eu fui andando e Rubertu bamboleando. Ele parecia uma criança cantarolando, uma criança idosa nos seus dezenove anos.

Não sei o que ele queria ao ir às margens do rio Rego. Acho, até hoje, que nem o rei sabia. Mas, em sua profunda sabedoria, Rubertu, entre as longas inspirações de olhos fechados e os risinhos aos saltos por entre borboletas — juro!, foi o que vi —, encontrou uma cousa muito peculiar. Era algo pequeno, roxo, cheio de curvas esculpidas por uma mão divina:

— Uma concha! — ergueu Rubertu entre as mãos. — Uma magnífica concha!

A princípio me afeiçoei à beleza da concha; realmente era encantadora, de um arroxeado quase lilás, mudando apenas conforme à luz. Era peculiar o suficiente para eu vaguear muito na mente.

Mas me retive por um segundo para notar cousas mais importantes: como o fato do séquito de Rubertu ser formado apenas por um maestro magrelo e nenhum guarda.

— Só há eu acompanhando o senhor, vossa graça?

Rubertu tomou um tempo, arrancando pétalas de uma flor em um jogo de "bem me quer" ou "mal me quer", antes de responder.

— Ah, sim, é; isso aí, Verdoso. Fugi dos guardas, eles são muito chatos.

Eu quase tive um mal súbito ali de supetão. Antes de consumar o fim brusco de minha vida patética, uma mão divina me ergueu em plena queda para me colocar de pé novamente e diante de meus deveres: Rubertu... cheirando uma pinha, pela qual uma aranha venenosa se arrastava.

Bati na pinha com um tapa. Rubertu esbugalhou os olhos e disse:

— Grosso!

E fomos embora com Rubertu brincando com sua mais nova concha.

O Bitcoin da Idade Média: Um Conto de CoimbroulasOnde histórias criam vida. Descubra agora