Se eu quiser falar com Deus

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Uma capela, simples e solitária, destas tantas espalhadas neste Interiorzão de Meu Deus; abandonada no meio daquela estrada deserta.

Havia décadas que assistia apenas o movimento dos caminhões, levando e trazendo cargas; e esperava, esperava alguma alma que viesse lhe dar as graças de uma visita, ou, de uma confissão.

"Se eu quiser falar com Deus"

Mas, seria aquele o dia que sua espera findaria? Vejam lá! Há alguém entrando pela porta.

A velha porta de madeira gasta, trincas enferrujadas, porém, que já não trancam, pois ninguém mais se responsabilizava em abrir e fechá-la; estava à própria sorte, de portas e braços abertos.

A visita recém-chegada dirigiu-se para o pequeno oratório, e acendeu uma vela; a última fora acendida a quatro dezenas.

"Tenho que ficar a sós"

Depois sentou-se em um dos poucos e pequenos bancos que existiam e ficou, apenas olhando, fixamente a imagem de Nossa Senhora com seu Menino, que havia na pequena mesa, que um dia, foi chamada de altar.

Ali estava, no silêncio da companhia de Deus.

"Tenho que calar a voz"

Quando enfim, o homem resolveu falar. Se confessar.

Começou ficando descalço e se pondo de joelhos.

Tirando a gravata que lhe sufocava as palavras.

"Tenho que folgar os nós

Dos sapatos, da gravata..."

Olhou pra cima, e se entregou:

-Deus; perdoe, eu pequei.

- Mas isso não deve ser novidade para você. Quantos eu já tenho na conta com o Senhor? - Dito isso com um riso

"Tenho que perder a conta"

-Espero não estar profanando este seu humilde templo.

Humilde mesmo, as paredes estavam manchadas pela umidade, e bem, fazia tempo que precisavam de uma mão de tinta, pois já começara a descascar.

-Digo, eu sei O QUE sou! Eu sou o terror em forma de Estado.

-O homem que colocou fogo na água! Incendiou aldeias! Enterrou milhares de guerreiros! O pesadelo dos índios!

- "Anhanguera". - A última palavra fizera um eco.

"Ter a alma e o corpo nus"

Fez uma leve pausa, e continuou.

-Mal consigo me olhar no espelho às vezes; sem vê-los nos meus olhos, tupiniquins tanto quanto o sangue nas minhas mãos.

-Sinhor, você sabe do meu passado, sabe que minha vida não foi sempre fácir. O tanto que eu matei, o que eu reneguei, pra chegar até aqui.

-Pra ser o'que sô. Essa farsa que sô! Farsa engravatada, moderna, urbanizada...

-A quem quero enganá? A mim? Eu sou um caipira.

Um silêncio melancólico tomou a pequena capela.

-Com o Sinhor, meu Deus; só com o Sinhor; eu me permito arrastá-los.

-Os "errês"... - Novamente uma risada cínica.

-Sei que não vai me jurgá.

-Eles disseram não é? Como disseram! Todos eles!

-Que eu não conseguiria. Que nunca chegaria lá... Que eu era um bruto, e ignorante, um chucro bandeirante.

-Minhas ropas eram uma piada, meu sotaque,uma piada... Ser caipira era chacota; então eu não podia sê!

-Prometi a mim mermo que ia ficá rico; subir de níver, pegar as maneras... E calar a boca deles tudo!

-E eu consegui.

"Tenho que comer o pão que o diabo amassou"

-A troco de quê?

-Eu não ganhei mais respeito. Continuo sendo a ovelha desgarrada; parece que quanto mais dinheiro você tem, mais odiado você é!

-Mas adivinha só meu Deus: O Diabo também é cristão!

Olhou para a cruz num olhar profundo de afronta.

-Sempre senti vregonha sabê? As igrejas dele mais pareciam palácios! Todinhas dornadas d' oro. As minhas eram umas taperas, com uma mesa e um crucifixo de madera; sem bancos, só terra batida; era só disso que os jesuítas careciam para catequizar os nativos daqui.

"Tenho que lamber o chão dos palácios, dos castelos,

suntuosos dos meus sonhos"

-Pruquê aqui então? - Olhou ao seu redor.

-Pruquê não uma magnífica "Sé"? Ou o imponente "Aparecida"?

-Depois de atingir toda a minha glória e independência, eu me perdi. Me perdi em meio ao meu labirinto de prédios, na minha prepotência.

-Orguio.

-Não sei mais quem eu sô. Tô tentando achá quem eu fui: o caipira, o bandeirante; o Paulo que me trouxe inté aqui.

-Entender pruquê eu sô ansim...

"Tenho que me achar medonho"

-Por isso vim aqui atrás de respostas que só o Sinhor há de ter. Pois o Sinhor sabe de tudo: dos meus pecados , do meu passado, das minhas dores...inté do amor partido. - Engoliu o choro, porque não era homem de chorar

"Se eu quiser falar com Deus"

-Bem,é isso...-Dizia secando a única lágrima do rosto.

-Obrigado pelo seu tempo e atenção a este pobre demônio.- Já calçava de volta os sapatos que agora podia, enfim, ter.

"Tenho que dizer adeus"

Engravatava a gravata, tornando a sufocar de novo as palavras; e se levantava do banco.

"Dar as costas,caminhar"

Com a máscara posta novamente, seguia para a saída da capela. E do lado de fora se deparando com a imensidão da estrada.

"Decidido, pela estrada"

Errando muito, errando pouco; continuava fazendo sua história.

"Que ao final, vai dar em nada"

E a capela continuava com sua espera.

"Nada, nada, nada, nada..."

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⏰ Última atualização: Sep 21, 2022 ⏰

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