PUTREFAÇÃO

46 11 11
                                    

Depois de um tempo juntos, você comprou um carro. Disse que era o primeiro investimento no nosso futuro. Você me levava para o trabalho, mas eu insisti para continuar voltando de ônibus porque não queria explorar a sua boa vontade.

Na última sexta feira você deu uma desculpa esfarrapada para não me buscar de manhã. Na verdade, você esteve dando desculpas nas últimas semanas. A culpa era do seu trabalho, ou que o carro simplesmente tinha parado de funcionar. Eu não me preocupei, o carro era velho mesmo.

Daí você disse que precisava mudar no final de semana passado e que só me mostraria seu cantinho novo quando estivesse pronto. E como sempre fui sonhadora, sorri imaginando a surpresa que você iria preparar para mim.

Uma semana se passou e a única surpresa que ganhei foi você me falando por mensagem que não gostava mais de mim.

É estranho reparar nesses detalhes agora. Enquanto essas coisas aconteciam, enquanto você mudava bem na minha frente, eu nunca imaginaria que seria para o nosso fim. Eu acreditei em você quando você disse que comprou o carro pensando na gente. E eu sonhei que você iria me pedir em casamento na nova casa.

Porque, por mais que a gente só estivesse junto a alguns meses, eu teria dito sim para você.

E isso está me machucando tanto, tanto...

Deito em minha cama outra vez e percebo que o seu maldito perfume está no meu travesseiro, mesmo que você nunca tenha dormido ali. Eu só queria dormir contigo depois do casamento, e você foi tão gentil ao concordar. Faz parte da minha criação, eu expliquei. Tudo bem, você respondeu.

O problema é que no dia posterior a nossa primeira conversa eu perguntei o nome do seu perfume e falei que ele era muito bom. Como sempre, você riu e me disse qual era. Quando cheguei em casa, fui rapidinho comprar o tal frasco pela Amazon. Ele chegou cinco dias depois. Você também riu disso.

E pensar em você rindo, sorrindo, abrindo seus lábios, mostrando seus dentes meio amarelados que eu vivia insistindo que deveria fazer um clareamento, faz algo a mais em meu peito se afundar.

Eu sinto como se cada veia do meu corpo se inflamasse, uma por uma, junto com lembranças boas de você. Não está doendo apenas como uma dor emocional, está se transformando em dor física. Tudo dói. Da cabeça às pontas dos dedos do pé.

Ainda bem que só li a tua mensagem depois que saí do trabalho, mas tenho a impressão que você sabia que seria assim. De alguma forma, sinto que você tentou ser menos ruim no final. Não que você tenha sido bom, porque na verdade foi terrível terminar comigo por mensagem. Mas se eu tivesse lido aquilo antes de ir para o trabalho, teria sido mil vezes pior.

Amanhã será sábado, e depois domingo, e me pego pensando que se você quiser, podemos assistir a um filme e comer alguma besteira na minha casa. Só depois de alguns minutos idealizando como seria legal é que meu cérebro se lembra do que aconteceu.

Esse é o primeiro bug que encontro em mim depois de você. Sei que haverão outros, é fato. Não consigo imaginar minha vida sem você. Tudo o que planejei e ainda planejo é contigo.

E mesmo que eu tenha te visto na quarta-feira, só para te ouvir dizendo suas desculpas, hoje já sinto uma falta imensa de ti. Sinto a falta por agora, e por todos os outros dias que virão. Essa é a forma do meu corpo avisar que já entendeu que não vou mais te ver, que tudo o que me sobrou foi o seu maldito perfume.

O que vou fazer agora que você não me quis mais?

Essa pergunta dói tanto que é como se meu sangue inflamado estivesse saindo pelos poros em minha pele. E a ferida que você acabou de abrir, que está muito exposta, ao invés de soltar o exsudato, começa a apodrecer, e eu vou me desfazendo.

Até que não sobre nada outra vez.

(de)composiçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora