Cidade do Nunca

223 28 131
                                    

Tenho orgulho de ostentar em meu currículo profissional a mais vasta e empolgante variedade de experiências, e confesso carregar tamanho apego àquelas linhas preenchidas que nada nesta vida me faria abandonar a hipótese de aumentá-lo

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Tenho orgulho de ostentar em meu currículo profissional a mais vasta e empolgante variedade de experiências, e confesso carregar tamanho apego àquelas linhas preenchidas que nada nesta vida me faria abandonar a hipótese de aumentá-lo. Nada, entretanto, uma história.

Essa foi enraizada no Distrito Policial de Lobeiros, local para onde fui encaminhado em novembro de dois mil e sete, influência de uma ocorrência na cidade nordestina que faz divisa com o estado da Bahia. E lembro-me como se fosse hoje do dia maldito em que pisei naquele posto, tomado pelo entusiasmo de um caso não-solucionado.

Sequer precisei registrar minha chegada na recepção. Um homem atarracado — que se apresentou como Inspetor Velarde — me saudou ainda à porta, comunicando-se com gestos ansiosos e exagerados antes de me guiar, sem mais dizer, até o local onde descansava a vítima.

E me permita dizer que "descansar" é eufemismo. Estava tão vivo quanto o Mar Morto, deitado em uma das camas de metal do necrotério. Além disso, não havia visto nada fora do comum no defunto. A pele fria era branca, agora pálida, mas com resquícios de queimaduras proporcionadas pelo sol escaldante da região. Seu cabelo era ralo e cacheado, com mechas enroladas como caracóis preguiçosos sobre a testa. Mesmo o corpo era robusto e não apresentava qualquer sinal de violência ou decomposição.

Franzi o cenho para Velarde, que estava parado à porta. A vítima de que fui informado por ligação estava morta há pouco mais de três semanas, e fiz questão de verbalizar este pensamento para ele. O homem, entretanto, nada fez além de curvar os lábios e dar de ombros.

— Exatamente, senhor — explicou, confirmando como se eu houvesse adivinhado a resposta para uma prova da quinta série. Me inquietei.

— E não apresenta nenhum sinal de decomposição? — a essa altura, já havia me aproximado do cadáver e exposto a pele rente ao abdômen, onde incisões foram feitas por algum médico legista anterior à minha chegada. — ou pistas?

Velarde confirmou, então estremeceu, recuando um passo rumo à saída. O gesto, que não passou despercebido por mim, foi apontado e ele balançou a cabeça.

— Nenhuma pista? — pressionei, apanhando luvas cirúrgicas em uma bancada próxima antes de voltar ao morto.

— Nenhuma… quer dizer — engasgou, desenhando uma cruz no ar antes de continuar. — é mais um boato, senhor.

— Então me conte — não tendo achado nenhuma evidência física de sua morte, abandonei temporariamente o trabalho e voltei minha atenção para Velarde, esperando que pudesse dizer algo útil.

— os outros médicos viram… algo — explicou. — dizem que o morto falou.

— Besteira, homem! — neguei, incrédulo, afastando o arrepio que percorreu o meu corpo conforme imaginava a cena. Mortos não falavam e disso eu sabia, entretanto, não podia negar que sua existência naquela sala era estranha.

Cidade do Nunca [CONTO]Onde histórias criam vida. Descubra agora