Mão Única

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— Sabe, dizem que começar uma história com um diálogo é um tanto quanto desanimador. É tipo começar um jogo de futebol sem o juiz e os goleiros, mas como não entendo nada de futebol, vou seguir assim mesmo... 

Era uma sexta-feira, perto das 7 da noite e não havia muito movimento na rua. Eu havia chegado ao posto de gasolina há cinco minutos, estive entretida pensando em qual deveria levar, duas cervejas pretas, que eu adorava beber enquanto beliscava alguma coisa, ou três pilsen, para já ficar um pouco mais alegre e dormir rapidinho assim que desse sono. Apesar de beber quase todo dia, eu era bem fraca e mesmo assim, continuava bebendo. 

— Já entendi, você quer saber o que está acontecendo, certo?  Porque eu estou em um posto, porque a cerveja, e bem, porque de fato tudo isso importa, certo? 

A verdade é que existe tanta coisa na vida que não sabemos ao certo porque são, só sempre foram, e vamos morrer sendo assim. Pois é, está ai um ponto importante, morrer. Hoje é sexta, 22 de setembro de 2023, daqui a exatos 7 minutos, do segundo que coloquei o pé no interior da conveniência do posto, eu vou morrer. Fique tranquilo, eu não pulei na frente de um carro ou algo parecido. De fato, a exato 6 minutos e 57 segundos vai ocorrer uma explosão, tão forte, que no dia seguinte, mesmo com cinco caminhões de bombeiros, ainda será possível ver fumaça e fogo entre os escombros. 

Eu apareci na TV. Acho que é o ápice para uma vida tão apática: ter sua morte anunciada em rede nacional. É como ser um famoso, que meia dúzia de fãs realmente conheceram pessoalmente, e ter uma legião de pessoas chorando em suas casas ou mesmo no trabalho, assim que sabem da notícia. Nada contra famosos, e suas mortes trágicas, eu mesmo chorei quando um dos meus baixistas favoritos morreu de overdose em Jacarta a dois anos atrás... O som que ele fazia com aquele baixo, era incrível. 

— Que grosseria a minha, eu me chamo T. e você pode completar com o nome que achar mais apropriado para você, com a voz pseudo feminina que você deve estar fazendo em sua mente agora, enquanto lê isso.  

Eu amo. Se um livro tinha 30 personagens diferentes, eu poderia criar 30 vozes diferentes na minha cabeça, incrível... Por isso quando vi o cara na Mercedes azul ao lado da bomba quando entrei, mesmo sem ouvi-lo, imaginei que ele tivesse uma voz mais grossa, aerada, como se parte dela saísse pelo nariz. Um pouco fanho eu diria. Até porque ele tinha a postura meio arqueada enquanto enchia o tanque, e sua gravata vermelha lançada sobre os ombros, me remetia certa arrogância. 

— Eu entendo, T. não é bem um nome, mas sejamos justos, eu nunca poderei saber o seu. Então, fica com esse, agora se quiser me chamar por outro nome, fique a vontade. —  Naquele momento que passei pelo homem da Mercedes azul, ele chegou a me mirar de canto de olho, eu percebi, mas ele não percebeu que eu percebi... —  E se te conforta, eu também não sei o nome de nenhuma dessas pessoas que voaram pelos ares comigo. Para facilitar, que tal cores?  

Azul tinha cerca de 1m e 80, era meio esguio, os ombros pesados demais para o restante do corpo e a cara era magra e com linhas afinadas. O tipo de cara de nojo que você faz quando vê aquela comida que lhe embrulha o estomago. Já Branco era diferente, tinha uma maldade em seus olhos, e as correntes de metal barato que balançavam em seu pescoço, eram uma tentativa falha de parecer um rockeiro dos anos 90. Amora já era diferente, não sei dizer, quando cruzei com ela, dentro da conveniência, indo até o freezer, algo me chamou a atenção, e não foi apenas a sua cabeleira longa e arroxeada. Tinha algo em seu olhar e no contorno vermelho de seus lábios que não me eram estranhos. 

— Turquesa sou eu, prazer em conhecê-lo. Agora faltam exatos 5 minutos e 20 segundos para a explosão. Eu tenho três cervejas pilsen em minhas mãos. Branco está amarrando os cadarços de sua bota cano alto sujas de lama, Amora está me encarando, mas eu só vou perceber isso daqui uns 30 segundos quando nossos olhares se encontrarem. Azul está lá fora ainda, seu tanque passou da metade, quando ele terminar de encher... Bem, é o fim da história. 

A vida é uma via de mão única. Não dá pra dar meia volta, retroceder, fazer o contorno, ou dar seta para virar na próxima quadra em sentido totalmente oposto. Infelizmente, na vida só podemos ir. Mas para podermos lidar um pouco com essa reta finita, temos alguns retrovisores, nossas memórias, a forma como as vezes vasculhamos nossa mente em busca daquela memória, daquele dia, daquele exato momento, é incrível. Sem querer somos bombardeados com uma lembrança única e inesperada. Como quando meus olhos cruzaram com os de Amora, e os tons violetas me chocaram, e então reconheci sua boca vermelha, sua pele clara, os cabelos cor de amora se tornaram amarelos como ouro, e então me lembrei... Me lembrei da noite que nos beijamos, lembrei da maciez da sua boca, lembrei do som da sua voz, mas não consegui me lembra do seu nome. E nunca tive a chance de perguntar, porque a vida é uma via de mão única, e não temos como fazer diferente quando a oportunidade já passou.   

Cor de AmoraOnde histórias criam vida. Descubra agora